A Itália, por razões óbvias, sempre exerceu um imenso fascínio nos escritores e nos estrangeiros em geral. Sua história milenar, sua arte incomparável, seu clima, sua gastronomia, seus vinhos, enfim, seu patrimônio cultural inigualável explicam e justificam esse apreço universal pela terra de Dante e tantos outros. Pode-se dizer que todos os lugares na Itália, desde os menores lugarejos até as grandes cidades, valem a pena. Entretanto, creio que também é lícito afirmar-se que, do todo admirável, três urbes se destacam por sua presença marcante nas artes e, particularmente, na literatura: Roma, Florença e Veneza. Desta última, ocupar-me-ei brevemente a seguir, a partir de dois livros emblemáticos: Morte em Veneza, do alemão Thomas Mann, e Despedida em Veneza, do norte-americano Louis Begley.
Não digo que Veneza seja uma cidade triste e sem vida, a despeito da aparência enganadora de seus seculares e exteriormente desgastados palácios, vielas e monumentos. Como poderia dizê-lo se ela é, há muito tempo, um dos lugares mais visitados do mundo por levas e levas de turistas deslumbrados? Mas é também evidente, para os mais sensíveis e atentos, uma certa atmosfera melancólica que envolve a cidade, principalmente à noite e nas estações mais frias do ano, quando o lugar se livra um pouco das multidões forasteiras e fica entregue à quase exclusiva fruição dos nativos aliviados. Nesses momentos, não há como negar um certo ar taciturno, sorumbático, algo indefinido que é o contrário da alegria esfuziante ou até mesmo do simples contentamento, e que baixa suavemente, como uma névoa, sobre os espíritos mais impressionáveis. Aí é natural associar-se literariamente Veneza com decadência, ruína e até mesmo morte, o que certamente aconteceu com os dois escritores acima citados.
Morte em Veneza não chega a ser propriamente um romance. Por seu parco volume, está mais para uma novela, tal como A morte de Ivan Ilitch, de Tolstói. É coisa de menos de cem páginas, mas o suficiente para imortalizar-se como uma das obras clássicas da literatura universal. Nela, Veneza é cenário e também personagem, tal a força de sua presença real e simbólica no texto. Vejamos a trama.
O protagonista é um famoso escritor, Gustav von Aschenbach, de meia-idade, viúvo e solitário, de vida organizada e monótona, totalmente de acordo com o que a sociedade espera de alguém que é considerado admirável. Um dia, por motivo que aqui não vem ao caso, entra em crise existencial, resolvendo ir a Veneza em busca de paz e recuperação. Ali, esse homem extremamente contido, vê, na noite mesma de sua chegada, um adolescente polonês de rara beleza andrógina, por quem se apaixona platonicamente – e de forma fatal.
Essa paixão idealizada e proibida causa uma verdadeira revolução nos civilizados valores pessoais do escritor, tornando-o submisso – e até mesmo escravo – dos sentidos mais primitivos, numa verdadeira negação de tudo que norteou sua existência até então. Ele deixa-se levar por essa embriaguez sensual, ignorando os perigos da peste que chegara à cidade, vindo, ao final, a sucumbir, vítima indefesa do flagelo real e simbólico que não quis evitar. Sua morte é vista por muitos como a vitória do “selvagem” que havia nele (e em todos nós) sobre o homem civilizado e exemplar, vitória que só depende de uma circunstância propícia para se consumar. Numa linguagem freudiana, poderíamos dizer que foi uma vitória esmagadora do ego e até do inconsciente sobre o superego, fenômeno tão banal na vida humana, como sabemos.
Vê-se então que o cenário “decadente” de Veneza combina muito bem com o drama de Aschenbach, a peste e as mortes por ela causadas, a tal ponto que o autor colocou o nome da cidade no título da obra, realçando sua importância simbólica na mesma. No romance Despedida em Veneza temos uma trama um pouco diferente, mas com pontos de contato com a novela de Thomas Mann. Aqui, o protagonista, Thomas Mistler, é o dono de uma importante agência de publicidade norte-americana, casado, de meia-idade, rico e realizado, que, de repente, vê-se diante de um diagnóstico que lhe dá apenas alguns meses a mais de vida. Resolve então conceder-se alguns dias de folga, para, sozinho em Veneza, preparar-se para o fim iminente. E por que Veneza? Fala o narrador: “Iria a Veneza. Era o único lugar no mundo onde nada o irritava. Não havia necessidade nem de reserva nem de planejamento. Ele sabia onde se hospedar, qual o quarto a ser pedido e como evitar os turistas que alimentavam os pombos de San Marco ...
Sua consciência não o atormentaria se ele deixasse de ver esse ou aquele quadro ou monumento essenciais. (...) Ele vinha observando Veneza com cuidado desde a época da faculdade”. Ou seja, a cidade já lhe era familiar e querida, um ótimo lugar, portanto, para o ajuste de contas final. Esses poucos dias em Veneza será sua despedida solitária do mundo, totalmente livre de compromissos e de pessoas, até mesmo da mulher e do filho, um encontro derradeiro consigo mesmo, após o que certamente entraria na “zona de guerra”, onde a doença levaria a melhor, sem apelação. Temos aí novamente Veneza como ambiente de um drama trágico, como paisagem escolhida pelo protagonista para o recolhimento e a meditação necessárias ao atormentado momento vivido.
Evidente que a “história” contada nos dois livros poderia ter outra cidade como pano de fundo. Não qualquer uma, lógico, pois não se conceberia, por exemplo, nenhuma delas se passando em Miami, cidade sem alma, está claro. Mas sente-se perfeitamente que a escolha de Veneza para os dois casos foi perfeita. A especialíssima atmosfera veneziana, com sua antiguidade decrépita, sua arte e sua paisagem, até mesmo (ou talvez sobretudo) o prognóstico sombrio que prevê o afundamento futuro da cidade, tudo isso tem muito a ver com finitude e mortes anunciadas, de tal maneira que o lugar, a trama e os personagens se amalgamam definitivamente, de forma esplêndida e tocante.
Seja nos livros, seja nos filmes, Veneza sempre consegue ser mais do que simplesmente um mero lugar onde o enredo acontece. Poucas cidades se impõem dessa maneira. Tiro o chapéu (e também a máscara).