Em tempos pandêmicos, mais do que nunca, nos é escassa e imprescindível a existência de referenciais. Flui, nos países da América Latina, subterraneamente, uma riqueza incomensurável de Arte e fazeres que a contemporaneidade pós-moderna, tenta, a grande custo, liquefazer: ao achatar toda e qualquer forma de criação humana, procurando igualá-la indistintamente. Em música é urgente que se brade em alto e bom som: nem toda música é Arte! E isso precisa ser esclarecido, sobretudo nos ambientes acadêmicos, pois é lá, seja por fins de estudos, seja por interesses seculares de alimento do mal gosto,
onde se nutrem e se perpassam os mais esdrúxulos e maléficos equívocos.
A cultura artística sul-americana precisa de vozes tenazes para que sejam ouvidas em meio a um disseminado discurso preconceituoso de esquecimento do que é Bom, Belo e Justo. Vendem desmúsica como se música fosse, e acima disto, como se esta fosse a autêntica música dos povos abaixo da linha do Equador. O ensino musical carece daqueles que professam Música que alimente a alma! No Brasil, mesmo os bem vocacionados intérpretes do momento ainda são tímidos ao defenderem a Música Artística nossa. E, nesse contexto, um jovem pianista se destaca pela versatilidade de seu repertório, sem perder o vínculo direto com o que o faz brasileiro e autenticamente Artista nacional. Não me esqueço das duas entrevistas concedidas a Jô Soares, em fases diferentes de sua trajetória; na primeira, a bela e espontânea criança aos sete anos que, com o olhar penetrante, já demonstrara o viço necessário para o estudo musical. E, vinte anos depois, já amadurecido pelo dedicado estudo, o belo rapaz, a falar de sua concorrida agenda e de seu pendor para a Música artística brasileira.
Fábio Martino, há anos radicado na terra dos Bach, é simpático e tem um estilo que o caracteriza com persona forte e empática. Desde a vestimenta, e o apreço pelos animais, até a escolha do repertório, e a atenção que dá ao seu fazer artístico, vê-se um brasileiro que DEVE orgulhar a todos quantos entendam verdadeiramente o que é Arte em nosso país. E é no álbum Latin Soul que Fábio nos dá uma prova inconteste de seu orgulho em professar essa latinidade tão apaixonante. São oito obras escolhidas a dedo para expressar a nostalgia, o cancioneiro e os ritmos dançantes das tradições sul-continentais das quais jamais poderíamos nos apartar. A técnica pianística de Fábio é límpida, e o permite interpretar livremente o que entende dessas escolhas musicais tão ricas e tão tocantes.
Pouco a pouco, não só Fábio nos revela sua leitura dessas obras referenciais, como também ele próprio está a se tornar num referencial: o seu exemplo precisa ser mimetizado por todos os pianistas de sua geração que sejam igualmente latino-americanos. Mais ainda: os pianistas norte-americanos e europeus, ou até do oriente, precisam descobrir a riqueza que há na Arte musical brasileira; e Fábio, assim como diversos outros que já gravaram num passado não muito distante, torna-se promotor hábil. Aliás, grandes músicos interpretaram a obra de Villa-Lobos, Guarnieri, Ginastera ou Francisco Mignone; nomes como Magdalena Tagliaferro, Felícia Blumenthal, Arnaldo Estrella, Fernando Lopes, Anna Stella Schic, ou Roberto Szidon e Antônio Guedes Barbosa. E diante destes gigantes músicos é realmente difícil ter o que-dizer próprio ao gravar obras emblemáticas como estas propostas por Fábio; mas, é justamente nesse sentimento de tradição cultivada, nessa consciência de pertença, que se vê a preservação de sua luta pela obra pianística, em nossos tão diluídos dias. Assim Fábio torna-se também embaixador desse som, desse elã, dessa cultura tão profusa e cuja exuberância ganha contornos por intermédio de seu carisma próprio.
Em Latin Soul Fábio nos lava a alma com Música que transcende rótulos, com Arte que nos alimenta o espírito, com tradição pianística da mais alta estirpe; Música para bem além da falsa dicotomia entre uma suposta arte popular versus uma arte erudita: porque Arte não tem pátria, tempo, ou outros ditames imediatos que a moldem; em Arte não há concessões!
O álbum, gravado em Baden-Baden, abre-se com o Ciclo Brasileiro do velho Villa. Na primeira peça, Fábio soube bem imprimir o som campestre ao piano; o Plantio do caboclo é evocado numa canção cujo acompanhamento está na voz aguda, numa interdependência de camadas que é plenamente compreendida pelo pianista ao exibir sua dissociação muito bem pensada para que as vozes cantem com singeleza, em meio a uma ambiência distante e cromática. Em Impressões seresteiras , Fábio traz o seu entendimento de pequenos detalhes na condução da agoge, transportando-nos para uma reminiscência impressionante de nostalgia, pujança, contundência e fatalidade. Essa mesma interdependência entre camadas na concepção villa-lobiana é bem comum em outras obras, e também encontrada em peça do mesmo ciclo; Festa no sertão tem um cromatismo alegórico flutuante, contrapondo-se ao tema melódico da mão esquerda. O ritmo frenético, e a enérgica agitação acórdica entre mãos bem podem aludir às imagens dos festejos, os mais diversos que o sertão brasileiro, suas crendices e historietas, guarda. Já na Dança do índio branco , essa técnica de intercalação das notas repetidas entre mãos, sonoridade bem característica ao piano, remete à motorização, ao mecânico do século passado, numa dança urbana inventada, numa alusão dançante ao mundo transformado pela engenharia civil de um Rio de Janeiro em franco crescimento na primeira metade do século XX. Os glissandos — que nesse repertório estão também expressivamente presentes, sob mesma função criativa, em Danza del gaúcho matreiro, de Ginastera, e no Lundu de Guarnieri — esticam-se, em três vezes ascendentes, numa melodia estriada pelo repetitivo mecanismo em moto-perpétuo, e nesse frenesi, novo glissando descendente anuncia uma breve coda (gesto de finalização) modal e precipitada. A quinta obra do ciclo é um chôro, cujo nome fala aos nossos corações porque bem selecionado pela própria brasileira alma de Fábio. Da melancolia à ginga, ora leve, ora marcada e bruta; enfim a alma nossa, de uma brasilidade bem transliterada em som e forma pianística.
Considerado pelo próprio Villa-Lobos como um rebento espiritual, Alberto Evaristo Ginastera escreveu vastamente. Suas obras são de um frescor rítmico e de um vigor compositivo que, mesmo fincado conscientemente no populário nacional argentino, alçou uma originalidade impressionante. Fábio resolve dar uma interpretação comedida em suas três danças: na Danza del viejo boyero , uma articulação clara; na Danza de la moza donosa, sentimentalismo expressivo no fraseado e no balanço choroso da mão esquerda; e na Danza del gaúcho matreiro, o comedimento a serviço dessa ideia de um gaúcho, que é comum ao nosso Rio Grande do Sul, esquivo e sabido, traduzido nas quiálteras contínuas e nas mudanças fugidias de tonalidade.
O conterrâneo de Ginastera, tido como o “Schubert dos pampas”, romântico inveterado, e que soube bem dar o seu toque próprio ao ideal de romantismo do qual nunca se distanciou, Carlos Guastavino compôs sua Sonatina em sol menor quando a Segunda Guerra Mundial, no século passado, estava findando, em 1945. Em seus três movimentos, Fábio apresenta sua percepção realçando todos os contornos sutis que a peça tem; em intervalos — de estrutura sempre diatônica, com poucos saltos — mais escalares que mantém a atenção firme, e um leve ritmo ancorado tenuemente no folclore argentino. Típico exemplo de Artista que sublima o óbvio e dá amálgama ao que absorve de sua cultura local.
Mas, é nas quatro danças de seu conterrâneo, o gigante musical Mozart Camargo Guarnieri, que Fábio nos atordoa com seu gaudiar pianístico. Na Dança Selvagem o pulso marcado do folguedo de caboclinhos e das barulhentas preacas se faz o condutor do discurso, o argumento selvático dessa manifestação, notadamente pernambucana, que emula o guerrear indígena. Os galopes são formas de passos na dança que em vez de gritos, tem nessa interpretação composicional, uma melodia áspera e gasguita com intervalos paralelos de sétima maior.
Nas Dança negra, Dança brasileira, e no Lundu , o gingado e o molejo envolventes desse fascínio cultural herdado de tribos e tribos, nações e nações d'África: por terras além-mar aportaram e pela genuína Arte brasileira se fazem orgulhosamente presentes de tal sorte que os movimentos em defesas dos direitos de igualdade racial não tem senão A OBRIGAÇÃO de louvar essa Arte, e com gáudio, divulgá-la, para que melhoremos enquanto povo. É um pianismo aguerrido esse de Guarnieri, e que Fábio abraça com missão nobre: Evoé Brasil!
O álbum se encerra com uma dancinha nostálgica que nos faz pensar nas caixinhas de música dos velhos tempos de outrora, nas memórias turvas de um passado querido: Guastavino faz-nos deleitar pelas mãos de Fábio e a pensar sobre até onde poderíamos chegar se aprendêssemos a nos valorizar enquanto continente criativo e emotivo, enquanto sulamericanos, verdadeiramente que somos ou fomos...
O disco na íntegra pode ser ouvido pela Rádio Cultura FM 103,3, mas recomendo, sem titubeios, que adquiram o álbum que está à venda pela Amazon Music, assim como indico o seu sítio eletrônico — fabiomartino.de/ — para que conheçam mais sobre esse brasileiro; lá há, por exemplo, a intimista e explosivamente virtuosa Fantasia Brasileira Nr. 4. de Francisco Mignone que deixo em aberto meus comentários para um próximo encontro textual...