Imitação é imitação. À entrada do ano que findou, o fatídico 2020, assisti de uma varanda alta, 16º ou 17º andar, suficiente para descorti...

As estrelas da terra

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Imitação é imitação. À entrada do ano que findou, o fatídico 2020, assisti de uma varanda alta, 16º ou 17º andar, suficiente para descortinar a girândola concentrada à beira-mar, desde a estátua do Almirante à ponta do Cabo Branco.

No dia seguinte, enquanto a nuvem espessa não descobria o sol da primeira aurora, pus-me a inaugurar a pequena agenda de notas no seguinte estado de espírito: “Senti cansaço, enfado, da passagem de ano na varanda de meu amigo Edmilson. Não do anfitrião, do calor afetivo (ele é sogro de uma das minhas netas), mas do espetáculo produzido de fogos multicores, festa que o carioca apropriou e registrou, perfeita para a solidão da megalópole. Lá, deve ser bonito e até natural.

Mas entre nós, onde está a alegria disso? A não ser que seja outra, outro aconchego, e a pirotecnia de imitação apenas um pretexto. Deve ser isso.” Anotei.

Agora, com a família cada qual em sua casa, recolhemo-nos como num dia qualquer. A noção de tempo dissimulada pela novela das 6, das 7, das 8, das 10, até que o sono viesse. Telefono pra Martinho, Paulo, Nunes, Rubens, Flávio, para Ângela, gente de quase todo dia, e sobro. E começo a ver e me deter nos que se mantêm na agenda e não posso riscar. Se mantêm como se vivos fossem. O nome, apenas o nome em tinta de tantas lembranças! A parte que tiveram com minha vida, com um itinerário inteiro, com a família e com a obra de cada um, obra de todos, muitos na mesma profissão.

Peguei no sono sem apagar o rádio, uma caixinha maneira da Sony ligada no noticiário que sai deslizando até o fundo da rede, muitas vezes até o amanhecer. Nunca fiz rádio, fonte de grandes amigos. Mas como sou seu dependente! Desde o rádio de seu Nequinho, há 75 anos, o rádio da Grande Guerra.

E acordei com os estilhaços de luz na janela e na parede do quarto. Seguidos, sem parar. Fogos e fogos passando-me a impressão de subirem de todos os terreiros da cidade. Um São João dos anos 1950, as devoções crepitando por toda a redondeza suburbana da cidade. E senti, intimamente, em silêncio, uma grande alegria, a única talvez de todo o ano, levada aos céus pelos que acreditam na vida, apostam na vida, e ainda que não sejam filósofos nem apóstolos, nem tenham lido o verso que Ângela Bezerra de Castro soube batear como ouro universal de Drummond aos homens do seu tempo e de todos os tempos. Que mensagem?:

“Desejo apenas que você tenha muitos desejos, desejos grandes. E que eles possam te mover a cada minuto ao rumo da sua felicidade.”

Foi o que vi mover-se de um telheiro a outro deste meu lugar, uma girândola geral de votos mandada por cada um aos céus desta passagem. As estrelas da terra, de cada família, inteiramente dispensadas do espetáculo de imitação que assisti na transição do ano passado.

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