Capítulo 1
Estou no sudoeste do Texas, fronteira com o México, às margens do Rio Bravo. Vejo pessoas do outro lado, são imigrantes como eu, e estão ali para cruzarem o rio. Uns vão morrer, outros conseguirão. Eu consegui. Mas conseguir não é só chegar até onde estou, do lado americano.
Daqui para frente existe um inferno, e tem nome: deserto de Chihuahua. São centenas de quilômetros de terras hostis, desabitadas e sem água, com temperaturas muito quentes durante o dia e muito frias durante a noite. Se alguém decide enfrentá-lo, sem a ajuda dos coiotes, corre o risco de se perder para sempre.
O mais temível, no entanto, é a vegetação rasteira que esconde animais ferozes e o terreno pedregoso que habita a temível cascavel de Chihuahua, com veneno capaz de matar vinte homens juntos. E confesso, elas estão por toda parte... (pausa)
Desculpa se estou chorando, mas é que foram dias difíceis... Eu, eu não... Eu não queria voltar aqui, nunca mais. Voltei porque você, meu filho, me pediu muito. Eu lhe devia isso... Eu sei que você é escritor e quer falar sobre isso, sobre tudo o que vivemos e passamos. Lhe disse que minha história não é uma boa história, que é apenas uma história triste...
— As dificuldades podem dar boas histórias porque são portas para caminhos extraordinários. E que só os alcança quem os enfrenta! — disse Miguel.
Celina continuou:
Olhe, as águas turvas e agitadas do Rio Bravo escorrem indiferentes aos sonhos dessa gente. Às vezes, leva-os consigo, em busca do Golfo do México...
Veja aquele rapaz, ele acabou de se jogar na água, e nada em nossa direção. O rio é traiçoeiro e as pessoas que não são daqui não sabem disso. Há fervedouros e redemoinhos e quando a corrente pega alguém, pode puxá-lo para baixo e não tem como voltar à superfície. Então eu fecho os olhos e o que vejo?... Vejo aquelas pessoas, ouço sons, gritos, choro, o desespero daquelas crianças. Foi um dia bem difícil aquele...
A correnteza forte indicava uma passagem arriscada. Dezenas de pessoas estavam ali para tentarem a travessia. Elas não pensavam em morrer, nem imaginavam, sequer, que poderiam ver seus filhos serem tragados. Milagros e você estavam há alguns metros à minha esquerda; depois de vocês lembro que aquela família se preparava para entrar na água. Era um casal jovem e havia duas crianças com idades abaixo de 5 anos.
Apesar de esperançosos, pareciam bem assustados. As crianças estavam muito assustadas! A menor começou a chorar. A mãe lhe afagou os cabelos, esforçando-se para acalmá-la.
Entraram agarrados a uma câmara de ar bem grande, boias atadas às suas costas. Minha mãe me olhou apavorada, como a lembrar do dia em que meu irmão Tião fora levado pelo São Francisco.
Ouvimos alguém dizer num tom desesperador: "No va a funcionar. La corriente es fuerte!". Mas aquelas pessoas pareciam não ouvir, elas apenas queriam chegar, chegar à outra margem, onde agora estamos. Sabiam que se vencessem aquele obstáculo, até Houston ou outro lugar que lhes desse nova vida, com emprego, segurança e comida, ainda teriam a imigração que poderia prendê-los e deportá-los. Além disso, havia o obstáculo muitas vezes maior, o deserto. Que loucura, meu Deus!!
O rio Bravo não é tão largo assim, e logo aquela família avançou. Já alcançavam o meio quando sentiram a força da correnteza. E veio o esperado, um redemoinho! O casal começou a lutar contra aquilo! Remavam com braçadas, impulsionavam com as pernas. As duas crianças gritavam agitadas, a maior dava sinais de medo, dor e cansaço. A menor chorava, clamava por socorro, gritava pela mãe: “mi mamá me ayuda, me ayuda!". Era uma cena desesperadora. A água puxava, as crianças se agarravam ao pescoço dos adultos, os adultos abraçavam a câmara de ar. Outros imigrantes nadavam no mesmo ritmo e sentido, se aproximavam. A mulher gritava para que se afastassem, a outra criança também começou a chorar, agarrando-se a um braço do pai.
Era uma luta desigual porque ali a corrente dava rodopios. E tudo agora estava muito caótico, dando a entender que o rio queria um dos meninos. E aquilo estava prestes a acontecer. Então eu comecei a chorar, olhei para o lado, Milagros comprimia você contra o corpo, não queria que visse aquela cena. E quando voltei os olhos alguém gritou: "El niño es muy pequeno. Esto es malo!”. E foi nesse instante que a criança menor se desprendeu do pescoço do pai. A mãe, espantada, ainda estendeu o braço, mas não a alcançou. Do meio do rio os pais berravam vendo o filho ser carregado pela fúria da corrente.
Mas inesperadamente, alguém pulou na água, e nadou em direção ao menino. E por Deus, não demorou para alcançá-lo porque este rio, apesar de traiçoeiro, é estreito. Era uma mulher. E asseguro que eu disse para mim mesma: Para se fazer ato tão heroico deve ser algum parente ou alguém de grande generosidade. Também pensei que essa pessoa devia conhecer bem o rio, porque agarrou o menino e nadou segura e calmamente até aqui. Aquilo foi um alívio tão grande que eu chorei e Milagros veio e me abraçou. Então eu olhei para minha mãe, que estava a meu lado...
Mas não a vi, e também não a vi atrás de mim, nem entre aquelas pessoas, que agora aplaudiam, enquanto olhavam para a outra margem do rio.
E juro que não acreditei... Milagros disse-me aos prantos: “Esa mujer es tu madre, salvó al nino!“.
Não podia ser!. Minha mãe tinha acabado de fazer exatamente igual ao que um dia fez no São Francisco. Mas com uma diferença, da primeira vez ela pulou na correnteza para salvar o próprio filho, e fez aquilo por amor; mas aqui ela arriscava sua vida por outra vida porque, para ela, aliviar a dor de alguém era trazer felicidade para seu coração. Então foi isso o que aconteceu aqui naquele dia, Miguel!
Os dois ficaram em silêncio por algum tempo. O rapaz tinha conseguido atravessar. E rapidamente sumiu no mato do lado americano. Celina suspirou e tossiu. Continuou:
E de onde vim?
Bem... Meu nome é Maria Celina Fernandes, tenho 38 anos. Moro no Texas, sou casada e tenho você, um filho lindo e maravilhoso, que amo muito! Sou do sertão de Pernambuco, uma terra bem seca do Brasil, mas longe de ser isso aqui. Nasci e me criei num lugarejo pertencente a Orocó, de onde vim com minha mãe.
O lugar se chama Ermo, ermo como o próprio nome. Ali o tempo nunca passou, e nem nunca passará. Ajuda, só mesmo de Deus! Para quem vivia no campo e dependia da terra para sobreviver, esperança só do inverno. Às vezes ele não vem, e é quando lá os pobres se tornam miseráveis. Existe um rio que passa na minha região, e que é muito maior que esse, que escorre muita, muita água! É o São Francisco. Ele passa perto, cerca de cinco quilômetros, mas é como se não existisse para quem vive afastado da vazante.
Um dia aconteceu uma coisa nesse Rio, e talvez, sabe-se lá o destino, não tenha sido isso o que me fez chegar até aqui? Foi num sábado...
Com frequência, em fim de semana, a gente do Ermo ir passar o dia num lugar chamado Prainha. E nossa família ia junta. Eu tinha 17 anos e minha mãe tinha o dobro da minha idade, mas parecíamos irmãs, de tão jovem que ela era. Nossa! Sempre invejei sua disposição, sua energia! Mulher valente, pulso forte, determinada. Corpo de quem passou a juventude na dura lida da roça. “Aqui é perna de quem trabalha, minha filha!“, dizia com orgulho batendo nas coxas firmes e nos braços acentuados. Tinha boa resistência sobre a água. Era outra coisa que invejava nela. Aliás, todo mundo do Ermo se admirava quando ela ia nadar porque nem mesmo os homens de lá nadavam tão bem.
E aconteceu que, no início daquela tarde, a gente foi tomar banho no rio, eu e meu único irmão, o Tião, que Deus o abençoe. Ele tinha sete anos, a mesma idade sua, Miguel!
Minha mãe disse que estava indisposta e não quis entrar na água. Ela sempre foi uma mulher desconfiada, que só confiava nela mesma. Por isso advertiu — e com voz alta — pra gente não sair da margem. "Não sai daí, não sai daí, Celina! O rio tá puxando!".
E estava. Em certa época do ano o São Francisco ganha volume, força na correnteza. Parece manso, mas não é. Basta entrar e a gente percebe que não é. Arrasta o que encontra pelo caminho, principalmente troncos e galhos da mata ciliar.
Aqui você já deve imaginar o que aconteceu. E não demorou. Foi rápido, do nada, inesperado. Um galho veio, trombou em Tião, e puxou ele, para longe da margem. Eu vi, mãe viu, tudo mundo viu. Foi um desespero ver a correnteza carregando meu irmão. Cabeça de fora, expressão de espanto, mudo, mas um braço a gritar por socorro.
Eu de cá chorava, puxava os cabelos, gritava:
— Mãe, Tião!
E ela, o que fez? Ao ver que ele boiava, agarrado ao galho, não pulou na água, atitude de qualquer mãe movida pelo desespero. Em vez disso, e para surpresa de todos, correu pela margem. Mas a correnteza estava forte, e pequenas ondas agitavam o galho onde Tião se segurava num esforço insano para se manter na superfície.
Mãe continuava a correr pela margem. Todos gritavam. Ela parecia não escutar, pois tinha sua atenção e seu foco somente para onde o filho estava. No entanto, outra coisa atormentava minha mãe: a prainha. A prainha era uma margem arenosa e extensa, mas que não era tão extensa assim, e estava acabando. Depois havia um capinzal que avançava sobre a água, impedindo a passagem. Dali em diante era tudo ignorado, era mato fechado, alto, volumoso e o curso fazia uma curva que ninguém conhecia.
Mas mãe não se importava, pouca diferença faria o que ia acontecer pela frente. Ela só tinha um pensamento: correr, ser mais veloz que a correnteza e salvar o filho. Poderiam morrer os dois? Poderiam, mas ela não se importava com isso.
Aqui, os gritos se confundiam com os choros, as preces, os lamentos. O capim se aproximava, mais e mais. Minha mãe precisava correr; e corria muito, desesperadamente! Todos torciam pelo milagre, pelo incrível.
E já num último tempo o incrível aconteceu: Ela alcançou o galho, ficou lado a lado, e avançou mais ainda. E, logo, ela estava na frente. Sim, ela tinha ultrapassado o galho. E também foi nesse instante que aconteceu o milagre: a correnteza trouxe, com a graça de todos os bons anjos, aquele maldito e bendito galho para mais perto da margem. Foi quando, faltando alguns metros para acabar a prainha, ela pulou na água.
Eu lembro que gritei, já rouca, louca e impotente: “Mãe, salva Tião, mãe!“. Eu não sei se ela ouvia, mas jamais eu a vi nadar com tanta energia.
Ela nadou freneticamente, até que alcançou Tião.
Ali, naquele instante, ela deixou-se ficar, deixou-se levar, serena, imóvel, mas como a dizer para Tião que agora estava tudo bem. Eu a conhecia. Ela era de poucas palavras, mas muito segura de si, autoconfiante e incansável.
Então eu pensei: Ela vai conseguir porque as pessoas fortes sempre conseguem! Mas a fraca ali era eu. Por isso, de repente um novo medo avançou sobre mim, e veio como uma fera que desfere um golpe mortal. Eu imaginei o pior, uma possibilidade trágica e real, iminente e bem diante dos meus olhos. Quase enlouqueci ao ver, em menos de minuto, os dois desaparecerem na curva do rio.
Então coisas muito ruins se passaram pela minha cabeça. Houve um misto de alento e agonia. Ela salvaria Tião, ou iam se afogar os dois? Mãe era jovem, disposta; apesar disso, tinha corrido muito. A angústia, que já era sufocante, tinha se multiplicado, e quanto mais crescia, mais aumentava a dor e o vazio em meu peito. Foi muito desesperador! Havia um pescador à certa distância, e ele viu tudo aquilo, e gritou, apontando para um caminho estreito. Disse que ali havia uma passagem para atravessar o capinzal.
Então logo corremos e pegamos aquele acesso. Era um labirinto verdejante. Continuamos a correr através dele, que parecia nunca terminar.
Passado um tempo, avistamos alguns traços do rio. Finalmente tínhamos atravessado aquilo. Mas não havia ninguém ali. Contudo, continuamos a andar. Adiante havia mais capim, e agora um barranco. E de repente vimos pessoas na margem. Eram duas, eram eles! Ah Deus! Estavam vivos, mas muito assustados. Aquilo foi um grande alívio para todos, e para mim, um segundo milagre!
Voltamos para casa e naquela noite minha mãe disse para meu pai: "Vamos embora daqui!"
Uma semana depois deixamos o Ermo para trás e para sempre. Fomos morar em Orocó numa pequena casa alugada. No início foi tudo muito difícil porque não tinha serviço para ninguém. Então meu pai nos deixou, partiu para São Paulo em busca de emprego dizendo que não ia demorar. Nunca mais voltou. Ficamos eu, Tião e minha mãe. Dias depois nossa vizinha falou com o padre sobre minha mãe, e ela começou a lavar e passar a roupa da paróquia.
Em pouco tempo o meu irmão tomou gosto com as missas e os estudos. "Sabe ler e escrever?", perguntou o padre. “Ele é esforçado, mas não sabe quase nada", respondeu minha mãe. Então o padre arrumou escola e auxiliou no que podia. Semanas depois fomos à missa, e mãe parecia muito orgulhosa quando viu Tião vestido de coroinha, ajudando ao padre nos serviços litúrgicos da igreja.
Quatro anos depois um bispo da Capital visitou nossa cidade e lhe ofereceu estudo e a promessa de emprego futuro na Arquidiocese de Olinda. Em vez de chorar e dizer não, mãe outra vez ficou orgulhosa e feliz. Com ajuda dos fiéis o padre fez um enxoval e um mês depois Tião foi embora.
Como eu estava muito atrasada nos estudos, comprei fascículos, fiz supletivo pela televisão. Depois que o padre soube que eu gostava de ler, passou a me mandar livros. E como o prefeito vez ou outra aparecia na casa paroquial, mãe pediu interferência. “O senhor bem que podia falar uma ocupação para minha Celina, padre!”. E o prefeito quando me viu, correu os olhos de cima a baixo e disse com um ar fino e galante: “Você é uma moça muito bonita, e soube que tem apego por livros. Preciso de uma pessoa na biblioteca municipal".
Havia centenas de livros e revistas lá, e eu esquecia da vida folheando o que havia de ilustração. Foi quando descobri que o mundo era maior e muito mais interessante do que o Ermo, do que Orocó e o Sertão de Pernambuco. E comecei a viajar na imaginação! E uma vez, eu folheava uma revista, quando um lugar me chamou a atenção: A América! E ali, a partir daquele momento, eu passei a desejar a América, a viver e sonhar com a América.
E foi assim, meu filho, foi assim que tudo começou a acontecer...
— Sua história é mesmo muito envolvente, mãe Celina. Me pediu para não falar das coisas que aconteceram de Pernambuco até esse rio, onde nos conheceu. Eu era muito pequeno e, portanto, não lembro de quase nada do que aconteceu daqui pra frente. Nunca quis falar a respeito...
— Ah, meu filho... Porque aconteceram coisas terríveis. O deserto é realmente um inferno!
— Mas me prometeu contar tudo agora. Então, pode me contar o que aconteceu daqui até Houston?
— Claro, filho! Vamos, vou te mostrar onde enterramos Milagros!