Quando partimos do Brasil três semanas atrás, tínhamos como objetivo conhecer os Andes e assistir ao sol se pôr no mar, em oposição ao seu nascer em nossas praias do Oceano Atlântico.
Assim, tomamos como meta conhecer o Oceano Pacífico. Mais exatamente próximo à cidade de Lima, capital do Peru, onde planejávamos assistir ao ocaso de um dia.
Após termos conhecido Machu Picchu e retornarmos a Cuzco, diante das notícias preocupantes de insegurança nas ruas de Lima decidimos mudar nosso rumo em direção ao Chile.
Na véspera do nosso embarque comemoramos o aniversário de Ilma, minha companheira de todas as aventuras, desde então e para sempre. Presenteei-a com uma pulseira de prata, que havia comprado nas ruas de Cuzco na véspera, e cujos elos quadrados representam cenas típicas dos Andes peruanos. Até hoje ela guarda esta pulseira!
Dia seguinte embarcamos num avião da companhia AeroPeru. Destino: Arequipa, ao sul do Peru. Esta seria a primeira parada antes de entrarmos no Chile.
O vôo muito confortável foi um verdadeiro deleite, sobrevoando a cordilheira dos Andes bem perto dos seus picos. Em hora e meia desembarcamos no aeroporto de Arequipa. Tomamos um ônibus e fomos para o centro da cidade.
Arequipa é a capital da era colonial da região de Arequipa, departamento que fica ao sul do Peru. Com um milhão de habitantes, é a segunda cidade do Peru, também em importância, perdendo apenas para a cidade de Lima, capital peruana.
Foi fundada em 15 de agosto de 1540 por Francisco Pizarro. Foi edificada sobre uma antiga cidade inca. Situada num vale fértil entre montanhas cercada por três vulcões, sendo um deles o monte Misti. Arequipa está a 2.300 metros de altitude.
Ela tem edificações barrocas construídas com uma pedra vulcânica branca chamada sillar. O centro histórico é a Plaza de Armas, uma praça imponente ladeada pela Catedral Basílica de La Compañía, de estilo neoclássico. Foi construída no século XVII, e abriga um museu com objetos religiosos e obras de arte.
Outras atrações são o Convento de Santa Catarina, datado de 1580, onde cerca de 450 freiras viveram isoladas do mundo exterior, e o convento franciscano de La Recoleta, datado de 1648. Ele possui uma biblioteca com mais de 20 000 livros, dos quais o mais antigo data de 1494. Porém nós fizemos um curto passeio, apenas pelo centro da cidade, para não perdermos o nosso ônibus, que partiria para Tacna no início da tarde.
No horário previsto partimos de Arequipa, num ônibus pullmann. Percorremos a Rodovia Pan-americana.
A Rodovia Pan-americana é mais um conceito de Via, pois se trata de uma seqüência de estradas que começa na cidade de Quellon, no sul do Chile, seguindo sempre na direção norte. À altura de Valparaíso recebe um ramo da Argentina, que se origina na Patagônia argentina.
Percorre toda a região oeste da América do Sul, ao longo do Chile, Peru, Equador, Colômbia, e sofre breve interrupção no acesso sul ao Panamá. A partir da Cidade de Panamá volta a se formar, percorrendo Costa Rica, Nicarágua, El Salvador, Guatemala e México.
Penetra nos Estados Unidos, onde se “perde” por várias opções de estradas, até chegar a Edmonton, no Canadá, onde volta a ter identidade única. Segue em direção norte até o Alaska.
Atravessa o Alaska até chegar à Baia Pruedhoe, que fica muito próximo à costa oeste da Groenlândia. Ao todo, dependendo do trajeto a rodovia mede de 24 mil a 48 mil quilômetros.
No sul do Peru a Rodovia Pan-americana atravessa uma longa região desértica, penetrando no Deserto de Atacama.
No meio do trajeto fomos surpreendidos por uma tempestade de areia, tendo o ônibus estacionado no acostamento por uns 15 minutos, quando a imensa nuvem de poeira passou e pudemos continuar a viagem.
Não consegui evitar me lembrar da chuva de granizo que nos surpreendeu lá nas encostas dos Andes, próximas a Cochabamba, quando subíamos em direção a La Paz. Também foi a primeira vez que assistimos a esse fenômeno.
No meio da tarde chegamos a Tacna, última cidade peruana antes da fronteira com o Chile, e logo tomamos um ônibus comum em direção a Arica, no Chile, nosso destino final.
Pensávamos que seria uma viagem entediante, mas aconteceu algo que nos deixou chocados.
Assim que o ônibus alcançou os arredores de Tacna os outros passageiros, na quase totalidade chilena, iniciaram uma movimentação intensa dentro do veículo.
Homens e mulheres abriram as suas sacolas e começaram a retirar delas os alimentos que continham, e passaram a guardar dentro de suas roupas íntimas. Ficamos chocados ao assistir mulheres despejarem grãos de feijão dentro de seus sutiãs, ou amassar um pacote de açúcar e colocá-lo dentro da calcinha!
Ao perceber que estávamos atônitos, um deles me deu a seguinte explicação: o Chile estava sob o regime de exceção, uma ditadura militar tinha dado um golpe no país mais de dois anos atrás.
Lá, a situação política estava muito precária e o país estava vivendo grave crise econômica. Uma inflação brutal tornou os alimentos quase inacessíveis.
Segundo ele, antes do golpe, no governo democrático de Salvador Allende havia filas para se comprar alimentos. Mas havia alimentos e dinheiro circulando.
Agora havia mais filas, menos alimentos e poca plata, pouco dinheiro circulando. Era um quadro de recessão que assolava a população chilena.
Após esta explicação ele nos pediu para ajudá-los, transportando um pouco de alimento nas nossas mochilas. Ele disse que os guardas aduaneiros não examinavam a bagagem de brasileiros. Que consideravam o Brasil como que una dictadura hermana, uma ditadura irmã. Todos nós colaboramos, cada um contrabandeando um pouco de comida para dentro do Chile.
Ao pararmos na fronteira fomos bem recebidos pelos agentes aduaneiros. Mas observamos que eles foram rigorosos na inspeção das bagagens dos chilenos e peruanos nossos companheiros de viagem.
Com essa experiência nós começamos a esfriar nosso ânimo para conhecer o país. Bienvenidos a El Chile de Pinochet!, era só o que pensávamos.
Arica é uma cidadezinha portuária pouco atraente, que à época era despida de encantos. À noite após jantarmos demos uma volta e quase não encontramos ninguém nas ruas.
Depois de um dia longo, e de uma viagem bastante cansativa, estávamos todos exaustos. E com medo! Podia se sentir a eletricidade no ar. Assim decidimos ficar no hotel.
Dia seguinte, após o café seguimos até à praia, onde fomos apresentados ao Sr. Oceano Pacífico! Alguns de nós se deixaram fotografar tocando na água. Antes planejávamos aproveitar melhor, inclusive nos banharmos nas suas águas. Porém estávamos muito assustados, sem ânimo algum para continuar.
Márcio Metzker e Elde se despediram de nós, e continuaram a viagem em direção à capital, Santiago.
Eu, Ilma e Alcides demos por cumprida a nossa missão, e embarcamos num vôo da Lloyd Aéreo Boliviano para La Paz. E depois num avião da Varig direto para São Paulo, cidade que ainda não conhecíamos.
Após quatro dias nesta capital, aos cuidados dos saudosos tio Raimundo Pires Braga, tio Gilvandro Sá e tia Adalva, e com a total assistência do primo Gilvan Pires, retornamos ao lar, muito saudosos. Porém realizados!
Depois dessa longa jornada só voltaríamos a viajar ao exterior 14 anos depois, quando iríamos conhecer a Europa. Em todas as nossas viagens sempre contei com a companhia inseparável e encorajadora de Ilma, me apoiando, confiando e estimulando todos os meus planos de vida. A ela eu dedico esta crônica de viagens.
Nunca mais retornamos à Bolívia nem ao Peru. Tenho muita vontade de voltar, agora que temos condições para aproveitar melhor. Será que aproveitaríamos?