“O coração tem razões que a própria razão desconhece”. A célebre frase de Pascal (1623-1662) para mim é perfeita. Resume e expressa de maneira clara e brilhante a grande e fundamental dicotomia que na filosofia iria conduzir ao iluminismo/racionalismo, por um lado, e, por outro, ao romantismo, duas correntes que ainda hoje disputam certa primazia no pensamento ocidental. Esclareça-se desde logo que Pascal, além de filósofo, era físico e matemático, portanto alguém muito afeito à pura racionalidade. No entanto, teve a compreensão de que a razão por si só não dava conta da complexidade do homem, no que ele tem de emoções e sentimentos.
Sabemos que a religião dominou ideologicamente toda a Idade Média. Deus e a fé religiosa monopolizaram o pensamento medieval de tal maneira que só a muito custo a modernidade conseguiu colocar o homem e a razão no centro da vida no Ocidente, abrindo caminho para nossa contemporaneidade laica e científica. Para o homem moderno, saído do medievo, nada de crenças indemonstráveis e de saberes abstratos. Só tinha então valor o que podia ser comprovado objetivamente e o único conhecimento aceitável era o de natureza racional, depurado de superstições e subjetividades. Segundo Luiz Felipe Pondé, instaurou-se com isso a “ideologia da razão”, ou seja, “a crença de que a razão resolve tudo, de que todos os objetos do conhecimento são racionais e de que apenas a incompetência e a ignorância negariam esse fato óbvio”.
Muito bem. Depois de séculos de teocentrismo, a desforra do iluminismo/racionalismo é compreensível. Havia um justificado anseio pela liberdade de pensar, sem medo das fogueiras da Inquisição, e uma reprimida demanda por autonomia humana em todos os aspectos da vida social e individual. E assim o pensamento racionalista dominou praticamente absoluto por décadas, até que começou a ser questionado em sua capacidade de tudo explicar e de tudo resolver. É então que surge em cena a corrente chamada de Romantismo. O coração e suas razões afirmaram em alta voz: Existimos!
Para o romantismo, ainda segundo Pondé, “a razão não esgota a vida interior do homem, e, portanto, sua ação. Ao contrário dos iluministas, para os românticos é a vida ‘irracional’ que determina a realidade humana. Essa concepção de vida ‘irracional’ não significa propriamente uma vida sem razão, mas sim além da razão”. Em outras palavras, uma vida racional, sim, mas não exclusivamente racional, pois que a razão por si mesma é insuficiente, apesar de necessária, para explicar o humano em sua totalidade.
Este problema é retomado por Eduardo Giannetti em seu livro “Trópicos utópicos” (Companhia das Letras, 2016). Ele coloca a questão nos seguintes termos: “...parece simplesmente descabida, além de irrealista, a pretensão de querer limitar a esfera do que é pertinente inquirir à província da investigação científica, como se a ciência gozasse da prerrogativa de definir ou demarcar o âmbito do que há para ser explicado no mundo”. Ou seja, a ciência ( ou a pura racionalidade) não dá conta de tudo que diz respeito ao homem. E o autor conclui: “...abrir mão de buscar respostas ao que está além do horizonte da razão científica seria empobrecer – e no limite negar – a nossa humanidade; a fome de sentido do animal humano existe desde que ele próprio existe e seria irrealista supor que ela pode ser suprimida por algum tipo de cordão sanitário cognitivo ou interdição intelectual”. Não consigo discordar - assino em baixo.
Essa mesma pretensão de querer elucidar tudo cientificamente também está presente, por exemplo, na neurociência que pretende explicar a mente humana apenas pelo funcionamento e composição da matéria cerebral, decretando assim a morte de conceitos como “alma”, espírito” e, em consequência, da própria psicanálise. Em lugar do divã, medicamentos; em lugar dos analistas, psiquiatras ou neurologistas.
Claro que aqui estou abordando muito superficialmente profundas questões. Mas o que desejo é somente situar o leitor para concluir afirmando meu apreço pela razão científica, sim, mas não em caráter exclusivo e absoluto. A mim muito importam também as subjetividades, as metafísicas, as transcendências e todos os mistérios do mundo e da vida que a ciência não consegue explicar. Importam-me os milagres, sim, os milagres, a suprema humilhação da ciência que eles constituem. Eu acredito neles – porque existem.
No fundo, o que estou tentando dizer é que a vida e a realidade totalmente explicadas, num frio e objetivo relatório pleno de certezas racionais, sem nenhuma mancha de dúvida ou hesitação, deve ser – e é – uma coisa muito chata – e estreita.
Quando vou ao cardiologista não espero nunca que ele saiba identificar, compreender e quem sabe curar uma mera dor de cotovelo. Que continue assim, cada qual no seu espaço. Ele, com as coronárias; eu (nós), com as razões do coração. Como já disse alguém com outras palavras: “Quem vai querer transparência, quando se pode ter magia?”