Inspirado no belo texto de Germano Romero , " Poema de fogo e luz ", sobre a sinfonia de Scriabin , resolvi escrever um pouco s...

Prometeu e o início da civilização

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Inspirado no belo texto de Germano Romero, "Poema de fogo e luz", sobre a sinfonia de Scriabin, resolvi escrever um pouco sobre Prometeu. Considero o mito de Prometeu um dos mais importantes da cultura grega. Há outros que rivalizam com ele, como o de Édipo, que envolve o parricídio e o incesto. Essa tragédia do ciclo tebano, por estabelecer duas grandes interdições sociais, torna-se a base da teoria psicanalítica de Freud.

Por outro lado, a Oresteia de Ésquilo, trilogia composta de Agamêmnon, Coéforas e Eumênides, tem a sua importância por ser uma das que se vincula ao ciclo troiano, mas sobretudo por tratar do momento em que a lei dos homens (especialmente para crimes de morte) substitui a lei dos deuses. A partir do julgamento de Orestes, nas Eumênides,
o acusado de assassinato deve ser julgado pelas leis humanas, a vingança pessoal deve ceder lugar à justiça pelo Estado e, na dúvida sobre a culpabilidade do réu, que ele seja absolvido.

Com Prometeu, no entanto, a situação é diferente. O Titânida, ele mesmo uma divindade, é quem leva a humanidade a se libertar dos deuses, além de estabelecer uma linha divisória entre homens e animais, com o advento do fogo que ele lhes concede. Este fato determina a sua punição, acorrentado nas escarpas da Cítia e submetido, ainda, à tortura de uma ave que lhe come diariamente o fígado, com o órgão se renovando incessantemente.

Sem Prometeu e a instituição do fogo não haveria a divisão entre homens e feras, não haveria civilização, muito menos haveria Édipo, nem interdições para o incesto, parricídio ou a necessidade de se criarem leis protegendo o homem dele próprio. Onde se encontram as origens desse mito?

Diferentemente de outros mitos, Prometeu está muito bem documentado desde o período arcaico grego, com Hesíodo (Teogonia, Trabalhos e dias, século VIII a. C.), passando pelo período clássico grego, com Ésquilo (Prometeu acorrentado, século V a. C.), e chegando ao período clássico latino, pelas mãos de Ovídio (Metamorfoses, século I a. C.).

Hesíodo dedica 110 versos ao mito de Prometeu na Teogonia, envolvendo o mito da criação de Pandora (versos 507-617); em Trabalhos e dias, são 64 versos (42-105), o mito aparece associado não só a Pandora, mas também a Epimeteu. Nas Metamorfoses, Ovídio dedica 13 versos à criação do homem por Prometeu (76-88) e 163 versos à recriação dos seres humanos, após o dilúvio enviado por Júpiter.
A nova humanidade é recriada por Deucalião e Pirra, filhos de Epimeteu, irmão de Prometeu (253-415).

A maior fonte, porém, continua sendo a tragédia de Ésquilo, com 1093 versos. Programado como trilogia — Prometeu acorrentado, Prometeu liberto e Prometeu porta fogo, — apenas a primeira peça chegou até nós, por isso não vemos a hybris (descomedimento) de Prometeu contra Zeus, só sabemos pela anamnese dos personagens e do próprio Titânida; assim como não vemos a sua libertação por Hércules, com a devida anuência de Zeus, mas sabemos que irá acontecer. Apenas temos diante de nós o sofrimento por que Prometeu passa. Sofrimento duplo: o de ver diante de si a passagem dos séculos, impotente, e com a noção do déjà vu, por ele ser conhecedor de tudo o que vai acontecer antes (significado do seu nome em grego); e o tormento físico da devoração cotidiana do seu fígado pela ave de Zeus, a águia. O órgão é diariamente reconstituído, para que a tortura não tenha fim até que Prometeu conte a Zeus um segredo crucial para a manutenção da ordem do universo.

O que faz o mito ser importante, ao ponto de se lhe dedicar toda uma tragédia? Falemos apenas do Prólogo da peça, para termos uma ideia do todo. O prólogo de uma tragédia tem a intenção de introduzir o tema da peça, às vezes se espraiando por mais de 100 versos. No caso de Prometeu acorrentado, o prólogo apresenta uma singularidade: embora contendo 127 versos, é nos onze primeiros versos que está o sentido da peça, numa síntese que não encontrei em nenhuma das 32 tragédias que nos chegaram.

Nessa fala inicial, momento em que Poder tem a voz — lembrando que aí existem quatro personagens, Poder, Violência, Hefestos e Prometeu — esta divindade que faz parte do séquito de Zeus, juntamente com seu irmão, Violência, nos informa o que devemos saber para o prosseguimento da peça:
Hefesto, com suas artes, deverá aprisionar Prometeu, com laços adamantinos, pelo roubo da flor de Hefestos, a luz do fogo brilhante, concedendo-a aos mortais. Por este erro grave, ele deverá aprender a se submeter à tirania de Zeus e abster-se de amar os humanos. Para Ésquilo, Prometeu é, literalmente, um filantropo (verso 11).

O restante do Prólogo se passa em diálogos entre Poder e Hefestos sobre a missão que o deus artesão tem que cumprir, mas que lhe causa repugnância. O deus faber se sente, para usar uma metáfora que seria compreendida por ele próprio, entre o martelo e a bigorna. Se ele não vê qualquer prazer de sua parte em aprisionar uma divindade congênere, também não pode se eximir de cumprir uma determinação de Zeus. Por sua vez, Poder sente prazer no aprisionamento e ainda tripudia com Prometeu, pondo em dúvida a etimologia do seu nome, cujo sentido, como já sabemos, é aquele que vê antes e, por esta razão, deveria ser previdente. Violência, significativamente, nada diz, só observa.

A última fala do Prólogo cabe a Prometeu, que assume os erros cometidos e sabe que a punição que lhe está sendo infligida é pelo que ele fez, contrariando a Lei de Thêmis, que, no limite, é a lei de Zeus. Consciente do que praticou e fazendo jus a seu nome, Prometeu antevê no barulho da revoada de pássaros, que ele apenas ouve, numa prática inquestionável da ornitomancia, as desgraças que sofrerá decorrentes de seus atos. Ao menos Prometeu tem consciência de que as escolhas levam a consequências, não importa quais sejam elas.

O fogo, que antes era concedido nos freixos pelos raios de Zeus, tem uma fagulha roubada por Prometeu no oco de uma férula, para que os humanos o cultivem. O favorecimento aos mortais irrita Zeus, pois a domesticação do fogo é o aprendizado da ciência e de todas as artes. O fogo não apenas queima, ele ilumina a mente e descortina os olhos para verem além da escuridão. O brilho do fogo (pyrós sélas, verso 7) é a flor (ánthos) do deus Hefestos, o deus artesão, instrumento essencial para ele fabricar das armas dos heróis, como os famosos escudos de Aquiles (Ilíada XVIII) e de Eneias (Eneida, VIII), até os robôs que Thétis encontra em seu palácio, quando vai pedir-lhe que fabrique novas armas para seu filho Aquiles. O fogo representa a transformação e criação. Dominá-lo é evoluir e desenvolver técnicas. É por conseguinte, ter ciência e a libertação do jugo dos poderosos. Por isto mesmo é que o fogo é chamado de pantéchnos, de todas as técnicas (verso 7).

Com o fogo e com a necessidade de seu cultivo, Prometeu concede aos homens: a lucidez contra espírito infantil; a casa de tijolo, em lugar de cavernas; o conhecimento dos astros e das estações; os algarismos, as letras; a memória; a submissão dos animais; a fabricação de carros, e de navios; a medicina; a arte da adivinhação — oneiromancia, presságios, sinais, ornitomancia —; os sacrifícios; a descoberta dos minérios e da forja dos metais... Libertando os homens da terrível doença da ignorância cega e das limitações danosa daí decorrentes, Prometeu irrita Zeus, que o pune. Mas essa punição terá limite. Como divindade cósmica, responsável, portanto, pela ordem do universo, Zeus terá que libertá-lo um dia.

O mito de Prometeu nos ensina a lição de que não há civilização sem sacrifício pessoal, sem que nos doemos ao outro para ensiná-lo a sair da escuridão da ignorância. É um mito que casa, perfeitamente, com a alegoria da caverna, de Platão. Por outro lado, aí também se encontra a alegorização da Pólis e do Estado moderno, trazendo-nos a aflitiva pergunta: como a evolução da técnica, do conhecimento e do desenvolvimento poderá não sucumbir diante do poder que lhe exige submissão?

Passados 2500 anos da encenação da peça, não conheço nada mais atual: o homem ainda tenta uma conciliação entre conhecimento e poder que leve a todos a situação de bem-estar social. E isto não virá sem que haja sacrifícios de todos, procurando a mudança que está dentro de cada um e que só cada um pode fazer. Essa lição passa pelo conselho que Oceano, um dos personagens, dá a Prometeu: "Conhece-te a ti mesmo" (verso 309). O conhecimento da ciência não livra o homem de tragédias, como muitos de nós, ingenuamente, pensamos. Mas o conhecimento de si próprio pode fazê-lo sair delas com inteligência e assumindo as responsabilidades de seus atos.

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  1. Muito da Bíblia provém dos gregos: Noé vem de Deucalião e seu dilúvio, Adão vem de Epimeteu feito de barro, Cristo no Calvário ( ou Gólgota ) vem de Prometeu no Cáucaso - pagando preço de nos ter dado o fogo, privativo dos deuses. Os gregos tocaram num tema riquíssimo ao falar dos arquétipos, um visão cifrada do que é, realmente, tudo isso que somos e o que nos cerca.

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    1. É verdade, Solha. No mundo grego, por exemplo há dois dilúvios. Um envolve Deucalião e Pirra (Livro I das Metamorfoses); o outro, Filemon e Báucias (Livro VIII das Metamorfoses). A importância entre esse dois mundos - o grego e o hebraico - da Bacia do Mediterrâneo, que se interpenetram, é tão grande que a primeira tradução da Bíblia, que nós chamamos de Velho Testamento, foi para a língua grega, a mando de um dos Ptolomeus. É a tradução dos Setenta, conhecida com Septuaginta, para a Biblioteca de Alexandria, no século III a. C.

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  2. Diante de tudo dito.meu caro Milton!!nada à acrescentar além da elogiosa ênfase.
    Paulo Roberto Rocha

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    1. Obrigado, Paulo Roberto Rocha! Fico feliz com a sua leitura! Abraços!

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