Narinha e o marido Durvalino não perdiam um pagode nas tardes de sábado, lá no botequim do Alcides. Dos que freqüentavam aquele samba, Celestino era o protagonista, um danado no cavaquinho, além de que era também bom de gogó e sua cantoria era o que mais animava a gafieira. Sem Celestino o pagode perdia o fôlego, desafinados teimavam em cantar e ninguém se prontificava a arrastar as mesas para um rala-bucho.
Bom mesmo era quando se reunia a patota dos instrumentos e cantadores sob a batuta do Mestre Celestino.
O time estava completo com Tião no violão, Zeca Venta Grande no contrabaixo, Paulinho Suvaco na sanfona e mais a turma da percussão, dentre esses últimos o Durvalino no reco-reco. Era uma animação de não se dar conta.
Narinha, sempre muito semostradeira e rebolativa, dava uma palhinha quando era para cantar alguma coisa do “Só pra contrariar”, sua banda preferida. Sabia de memória todas as letras dos CDs que colecionava desse grupo. Tinha fotos de Alexandre Pires em tudo que era canto da casa, mesmo sob protestos de Durvalino que sempre rezingava com aquela admiração.
A pagodeira no bar do Alcides começava rigorosamente às três da tarde e ia até quando Deus quisesse. Deus queria até no máximo uma hora da matina, quando recolhiam as mesas, cadeiras, copos e colocavam aquele mundaréu de garrafas vazias de cervejas nos engradados. Só nessa hora, nunca antes, era que Durvalino colocava Narinha na garupa da sua cinquentinha e tomavam rumo de casa, que ficava ali mesmo na comunidade.
Durvalino era frentista e pegava no batente durante o dia de segunda a sábado. Na segunda ia até mais tarde para livrar a cara mais cedo no sábado. Narinha era do lar.
Mais aí surgiu a notícia que havia uma doença matando gente que não acabava mais. Velho pegou é caixão na certa. Foi então que o governo mandou todo mundo para casa. Por todo mundo entenda-se também Alcides que teve de fechar a bodega. Bem, Durvalino não, porque trabalhava em posto de combustível e serviços essenciais não foram interrompidos. Gente da Saúde também ficou no batente.
Na primeira segunda-feira de quarentena, hora do almoço, Narinha passou mal. Meio dia a ambulância com sirene à toda, atravessando aqueles becos esburacados chegou à casa de Narinha. O enfermeiro a colocou no carrinho da maca e o chofer ficou no volante disparando a sirene.
Os vizinhos da comunidade se assustaram. Seria o corona? Não deve ter sido. Três da tarde Narinha estava de volta. Deu algumas explicações pelo celular, pois por via das dúvidas ninguém quis chegar perto. Só uma forte indisposição estomacal, justificou.
Terça-feira, no mesmo horário, aí foram as pedras nos rins, mas a ambulância chegou toda prestativa. Narinha foi devidamente socorrida e segundo disse, tomou buscopan na veia e ficou novinha em folha. Na quarta não deu outra, hora do almoço, Narinha quase morre de pressão alta: deu 23 por 14. Quem disse que o sistema de saúde no Brasil não funciona? O socorro chegou prontamente e novamente a ambulância levou Narinha para alguma emergência.
O mesmo na quinta: enxaqueca. Na sexta ninguém soube do mal que acometeu Narinha porque a ambulância veio buscar, mas não trouxe Narinha de volta.
Uma tragédia. Vou contar. Tem gente que não pode ver alguém feliz e já vai estragar a bem aventurança dos outros. Alguém descobriu e denunciou. A ambulância não tinha ido para clínica alguma, nem para hospital, nem para uma UPA em qualquer um desses dias quando “socorria” Narinha. O destino era um motelzinho melequetrefe. A polícia chegou e levou todo mundo em cana. O pior vocês não sabem, vou contar quem era esse “todo mundo”. O motorista era o Celestino e o enfermeiro, o Paulinho Suvaco. Os dois estão afastados de suas funções e devem ser demitidos a bem do serviço público. Durvalino, por uns dias quis se matar, mas passou a vontade. Está morando no mesmo lugar e tirou os retratos de Alexandre Pires da parede. Narinha? Ninguém mais soube dela. Na comunidade o assunto ainda está na pauta e quando passa uma ambulância por lá ninguém pensa no coronavirus, as fofoqueiras apenas ironizam: tranquem os maridos que Narinha tá chegando! Ninguém sabe se dizem isso por maldade ou o que é mais provável, por inveja.