Apenas nos nascimentos e nas mortes é que saímos do tempo. A terra detém sua rotação, e as trivialidades em que desperdiçamos as horas cae...

Marie, Rosa, Bárbara e nós outras

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Apenas nos nascimentos e nas mortes é que saímos do tempo. A terra detém sua rotação, e as trivialidades em que desperdiçamos as horas caem no chão feito purpurina. Quando uma criança nasce ou uma pessoa morre, o presente se parte ao meio e nos permite espiar por um instante pela fresta da verdade – monumental, ardente e impassível. Nunca nos sentimos tão autênticos quanto ao beirarmos essas fronteiras biológicas: temos a clara consciência de estarmos vivendo algo grandioso.
Rosa Montero

No livro "A ridícula ideia de nunca mais te ver" (editora Todavia), a escritora espanhola Rosa Montero ("A louca da casa", "História de mulheres", "Paixões") percebe que a história de Marie Curie, cientista polonesa, dialoga com a sua própria. A obra fala a respeito da morte e dos laços que nos unem ao extremo da vida.

Marie Curie foi a primeira mulher a receber o Prêmio Nobel duas vezes. Foi também a primeira a ter cátedra na Sorbonne e a fazer doutorado. Não é pouco! Marie encantou a Rosa Montero (e a mim) por sua obstinação com a Ciência, por sua invisibilidade no meio científico, por seu amor por Pierre, também cientista, e por seu pioneirismo e relevância no meio acadêmico francês.

Rosa Montero também aborda a organicidade da vida entrelaçada com a arte. Destaca a pobreza feminina, da qual também falou Virginia Woolf em "Um teto todo seu". Dicorre sobre o luto, ausência, dor, casamento, maternidade, o papel coadjuvante das mulheres, doenças, fragilidade, força, beleza, sobre a nossa síndrome de redenção. Tudo isso fazendo interseções com assuntos tão familiares às mulheres: solidão, machismo, nossas mães, raiva, desejo, sucesso, limbo social, dons, talentos, criação artística, intimidade, culpa, nossos flagelos e nossa felicidade. Fala principalmente da viuvez, do que isso implica, das manias do amor, das intimidades da cama ("nossas camas são tão importantes!... são o refúgio da nossa nudez mais absoluta"), da morte ("somos relicários de quem amamos; nós os trazemos aqui dentro, somos a memória deles”). Recomenda não nomear certas coisas, como a falta e as saudades tantas. Trata dos assuntos banais (“a vida real, a mais verdadeira e profunda, é feita dessas pequenas banalidades.”)

Através da vida de Marie Curie, ficamos sabendo também das dores de Rosa, da sua viuvez — com a morte de Pablo — e do seu sofrido luto, numa prosa de tanta poesia, de tantas palavras fortes e doces,
que acabei por identificar com a minha própria dor e com o meu próprio luto, há tempos vividos. Rosa pondera:

"Sim, é preciso fazer algo com a morte. É preciso fazer algo com os mortos. Depositar flores. Falar com eles. Dizer que você os ama e que sempre os amou... Gritar para o mundo. Escrever num livro... que pena ter esquecido que você podia morrer, que eu podia te perder. Se tivesse essa consciência, eu teria te amado não mais, mas melhor.... O luto é algo estranho... mesmo que o tempo passe, a dor da perda, nos momentos em que surge, continua parecendo igualmente intensa... a dor é disparada com menos frequência e você pode lembrar seu morto sem sofrer. Mas quando a tristeza surge, e você não sabe muito bem por que surge, é a mesma dilaceração, a mesma brasa.... Quem sabe com o tempo a mordida amenize, ou não. Isso é algo de que ninguém fala; talvez seja um daqueles segredos que todos guardamos.... Talvez nós, viúvos, nos sintamos estranhos ou péssimos viúvos por continuarmos sentindo a mesma dor aguda depois de tanto tempo. Talvez tenhamos vergonha e pensemos que não soubemos nos 'recuperar'. Mas já vou dizendo que não existe recuperação: não é possível voltar a ser quem você era. Existe a reinvenção, e não é algo ruim. Com sorte, pode ser que consiga se reinventar melhor do que antes. Afinal de contas, agora você sabe mais".

A escritora nos emociona com sua ideia "ridícula" de mesclar tantos assuntos, re-contando a trajetória de outra mulher e entrelaçando vidas e dores, tudo com poesia e maestria. Sinto um desejo incontrolável de citar o livro inteiro e de fazer o meu crochê de acasos, histórias, sabedorias e destinos.

Como a vida é uma sucessão de interseções, tão logo terminei de ler Rosa, caiu aos meus olhos o belo filme/documentário “Babenco – Alguém tem que ouvir o coração e dizer: Parou”, da atriz, diretora e produtora Bárbara Paz sobre seu marido, amigo e amor, o cineasta argentino-brasileiro Hector Babenco. A diretora compareceu à estreia do filme em João Pessoa, durante o Festival de Cinema Aruanda (dezembro/2019), ocasião em que também autografou o livro "Mr. Babenco – Solilóquio a dois em um: Hector Babenco e Bárbara Paz", de sua autoria. Ao final da exibição, estava eu em lágrimas e precisei abraçá-la em silêncio, em sintonia com o sentimento dela... e meu também.
O documentário, premiado no Festival de Veneza 2019, mostra a longa e brava luta do cineasta contra o câncer, entremeada com momentos, suas falas, ideias e momentos da vida pessoal, tudo costurado com cenas emblemáticas de sua filmografia: "O beijo da mulher aranha", "Pixote", "Ironweed", "Carandiru". A arte e a vida de Babenco são trançadas sob a câmera atenta de Bárbara Paz, sua musa, mulher, companheira de cinema e da vida. A sutil teia de uma existência mostrada na produção comove profundamente, ainda mais quando se tem em mente que o protagonista é real, sabe que vai morrer e quer viver num tempo outro que não o das horas. O tempo de duração, aquele não medido, que acontece entre o delírio e o real.

Com o fim à espreita, o diálogo foi ensaiado por Babenco algumas vezes, como no filme "Meu amigo Hindu" (2016), que tem Willem Dafoe no papel principal, seu alter-ego, um moribundo que divaga também sobre a experiência de estar em contato com uma doença terminal. Como o próprio Babenco ressaltou, é uma ficção alimentada com suas memórias, do período em que esteve doente.

Bárbara aparece algumas vezes no documentário, conversando, cuidando, filmando, aprendendo com seu amado e mestre. Ela protagoniza uma das passagens cinematográficas mais belas que já vi, previamente exibida no filme "Meu amigo hindu". Na cena, a atriz, nua, canta na chuva, num gesto de amor e beleza para um Hector embevecido com o momento. Nessa alusão ao clássico "Cantando na Chuva" (1952), sinto que Gene Kelly teria gostado de ver tanta beleza de uma bela mulher despida das roupas e dos pudores, dançando suave e tristemente, diáfana e alegremente.


Babenco fez da doença e da partida uma obra de arte. Cada um vive e morre com os recursos que tem. E feliz de quem pode narrar suas próprias dores, aninhadas em pedaços de vida, des-ordenadamente, propositadamente, tal como um novelo que se fia e se des-fia. Quem sabe assim (não digo mais fácil) seja possível driblar melhor o medo e o fim.

Como leitora, ao mergulhar nas experiências dessas belas e originais histórias de mulheres sábias e poderosas, também acrescentei a minha vida às lacunas vazias. Dolorosamente, essas mulheres também perderam seus maridos, sofreram, falaram sobre isso e seguiram.

Mantendo as devidas proporções de tempo, espaço e, principalmente, de importância, fico a pensar em Marie, em Rosa, em Barbara, em mim. Tantas distâncias, diferenças, destinos. Mas a morte é vivenciada de modo "quase" igual para todos os que acompanham seus enfermos. Os desfechos são "quase" os mesmos. Paralisias. Incredulidade. Silêncios. Não palavras. Não ações. Perplexidades. E, no entanto, tudo acontece! À nossa revelia.


“Você não vai morrer nunca?”
Um dia, como diz o poema: “Me moriré em Paris com aguacero, um dia del cual tengo ya el recuerdo.” Eu já vivi a minha morte, só falta fazer o filme, só falta fazer o filme da minha morte.

"Como será?"
Não tenho a menor ideia. Eu acho que vai ser um solilóquio, acho que deve se dar o espaço de novo à palavra, acho que tem que ser um filme falado, narrado. É, tem que escrever esse texto...”
trechos da capa do livro de Rosa Montero

A memória! Ah! A memória. Nossa guardiã.

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  1. Parabéns Ana Adelaide👋👋👋...realmente um precioso texto.
    Paulo Roberto Rocha

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