Faz algum tempo, escrevi: “O meu Drummond de cabeceira era o de alguns poemas experimentais do livro ‘Lição de coisas” e o de ‘No meio do caminho”, poema-catapulta através do qual ele arremessou a pedra do inconformismo poético contra os arraiais do ‘lirismo bem comportado’. Esse o Drummond com o qual o poeta adolescente que eu fui mantinha ‘afinidades eletivas’”. E concluía: “O outro, o arguto observador da vida humana, somente o descobri passada a febre das vanguardas, pois, até então, cultivava-se um discurso metalinguístico que havia praticamente abolido a ‘autobiografia do imaginário’”
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A pirotecnia de Oswald, então, se sobrepunha à discrição de Bandeira que, aparentemente, pouco ou quase nada ousou em termos formais, pois até mesmo quando concebeu alguns poemas concretos, o fez em tom de brincadeira, de trela, sem levar a sério a circunspecção que regia a teoria e a prática do movimento liderado pelos irmãos Campos e por Décio Pignatari*. E não poderia ser de outro modo, pois desde “Libertinagem” (1930) – livro com qual ele ingressa de uma vez por todas na aventura modernista – adotara o humor e a ironia como uma espécie de antídoto para combater e neutralizar “o gosto cabotino da tristeza”. Portanto, não seria já poeta maduro, com as suas convicções sobre a arte poética praticamente consolidadas, que iria investir numa poesia impessoal e asséptica, em detrimento da que sempre cultivou ao longo do tempo: uma poesia de timbre confessional e com a “marca suja da vida”.
Aliás, mesmo nos poemas mais metalingüísticos – “Poética”, “Nova Poética” e outros –, Bandeira sempre encontra uma fresta através da qual escapa para o lado de fora. Isso, porém, sem arredar o pé da linguagem. Da linguagem que, ao invés de isolar o “eu lírico” numa “torre de marfim”, “Longe do estéril turbilhão da rua”, sempre o situou “entre as miudezas (ou entre as pequenas grandezas) do universo”, circunstância que distanciava o poeta pernambucano do ideário vanguardista. E por quê? Ora, porque as vanguardas converteram a linguagem em referencial quase único e exclusivo do discurso poético, para tanto elegendo a metapoesia ou a metalinguagem – assim como o soneto foi o carro-chefe do Parnasianismo – como a sua principal forma de expressão.
Em contrapartida, se Bandeira poderia muito bem ter exclamado “Tô fora!”, diante das experimentações vanguardistas de então, os jovens poetas da época teriam dito o mesmo com relação a ele: “_De Bandeira, de sua poesia, tô fora!”.
Então, qual o meu Bandeira de cabeceira? O dos poucos poemas concretos que cometeu por pura trela? O de ressonâncias parnaso-simbolistas de antes de “Libertinagem”? O do próprio “Libertinagem”? Simplesmente, Manuel Bandeira quase não tinha espaço na minha cabeceira. Quem os tinha, e cativos, eram João Cabral de Melo Neto e Cassiano Ricardo, principalmente o Cassiano Ricardo de “Jeremias sem-chorar”. Afora esses, exceção feita ao Drummond dos poemas já citados, quase mais nenhum, nem mesmo os irmãos Campos e Décio Pignatari, dos quais me abastecia de suas teorias e traduções.
Daí ele declarar, ainda em “Itinerário de Pasárgada”, que as suas influências eram tantas quanto os grãos de areia na praia e as estrelas no céu, o que dá bem a medida do seu ecletismo. Ecletismo que me faz remontar ao Machado de Assis do ensaio “Instinto de Nacionalidade”, mais especificamente ao trecho em que o “Bruxo de Cosme Velho”, com a sua lucidez habitual, prega a necessidade de se fundir a tradição com a renovação: “Nem tudo tinham os antigos, nem tudo têm os modernos: com os haveres de uns e outros é que se enriquece o pecúlio comum”.
Manuel Bandeira jamais se submeteu passivamente ao jugo de breviários estéticos ou de conteúdos programáticos. Sempre procurou a voz com que se diferençar e se distinguir do coro monocórdio da “saparia parnasiana” de todos os tempos e lugares. Não foi um modernista empedernido, desses que se rendiam ao estilo de época, ao invés de procurarem o seu próprio estilo. E sabia não só que “O poeta parnasiano era mais poeta quanto menos parnasiano fosse”, como também que essa “boutade” de Mário de Andrade, embora utilizada para um determinado período da lírica brasileira, podia se desdobrar e recobrir todos os períodos indistintamente, desde o Barroco, passando pelo Árcade, Romântico, Simbolista, até as vanguardas. Quer dizer: assim como “O poeta parnasiano era mais poeta quanto menos parnasiano fosse”, também o poeta modernista ou concretista…
Bandeira fazia poesia por necessidade, não obstante alguns a façam para “imitar Mallarmé ou para filiar-se a uma escola literária”. A poesia, decididamente, “não é uma atividade literária, e sim vital”. No entanto, cumpre também ao poeta investir na atividade literária propriamente dita, do contrário uma vida plena de emoções teria tudo para se converter numa obra poética de altíssimo nível.
Enfim, quando diz que escreve poemas a partir das suas circunstâncias e dos seus desabafos, Manuel Bandeira enfatiza a sua condição de lírico orgânico, visceral, embora extrapole os estreitos limites do eu para se situar entre os adeptos do universalismo individualista.
Referências: * Palavras de Bandeira em “Poesia Concreta”, texto inserto no livro “Flauta de Papel”: “Conversei longamente com esses rapazes, especialmente com Pignatari e os irmãos Campos. Não são uns pândegos, acredite o ‘constante leitor’. Bem ao contrário, são impressionantemente sérios, a ponto de acreditarem que a sua concepção de arte poderá clarificar a consciência brasileira, melhorar a condição social do Brasil”. ** No poema “Balõezinhos”, de “O Ritmo Dissoluto”, o ajuntamento de gente, as barraquinhas de cereais, os menininhos pobres, as lavadeiras da redondeza, o homem loquaz, parecem ser vistos de um plano superior, privilegiado, como se o olhar do eu lírico correspondesse ao olhar de quem, debruçado numa janela, enxergasse a feira-livre do arrabaldezinho nos seus mínimos detalhes, em toda a sua inteireza e plenitude.