Aumentou a fome. Mais de 3 milhões vieram juntar-se aos 10 milhões que já vinham esfomeados na pesquisa de 2018. Não é estatística do PT, é do IBGE, até agora insuspeitável em seus registros, seja em que governo for. “Mais de 10 milhões vivem em lares nessa situação” acrescenta.
Fala dos que vivem “em lares”, preste-se bem atenção. Além desses, há do tipo que a cronista Ana Adelaide Peixoto avistou do carro e demorou o olhar para ver como se varre uma casa sem ter casa nenhuma, sem lar, o sujeito da Declaração dos Direitos Humanos situando seu CEP ao relento de uma calçada de Tambaú. Ao pé de um edifício de iguais perante Deus e a Lei.
“Depois de recuar em mais da metade em uma década, a fome voltou a se alastrar pelo Brasil” – assinala o IBGE.
Ressalte-se que o governo mantém o Bolsa Família, não sei a que penas. Ressaltem-se, também, os que se ausentaram involuntariamente da pesquisa, indo fazer parte da estatística do encerro sem rito pelo covid 19.
Milhões e milhões. Quando a doença, a morte, chegam a essa casa, os corações voltam a compassar, o milhão se trivializa, e nisso a onipresença maciça da comunicação passa a sua larga colher de cimento. Já não são notícias de espantar os números rituais do noticiário televisivo, aquele moço da Globo, sempre de preto, apontando a mesma curva sinistra. Milhares e milhares de infectologistas e apresentadores advertindo a higiene das mãos, o distanciamento social. Quanto mais recomendam, mais se adensa o aglomerado. Seja por necessidade ou por lazer. Sobretudo nas hordas bem visíveis da pobreza e da fome. Sempre aumentando. A rua dos varejistas de São Paulo, num flagra de anteontem, apresentou mais de 6 pessoas por metro quadrado. A longa rua não cabia. A maioria sem máscara. E sorrindo.
O flagelo da peste com sua carga invisível de contágio também veio concorrer para esse “nem estou aí”. Por pouco os mortos não caminharam para a cova com as próprias pernas. A meia dúzia de parentes, se muito, há de se postar de longe. Pranto inconsolável é raridade, só na novela, no folhetim eletrônico, lá dentro ou por fora da tela.
Não é fácil saber com certeza se o homem, se o que há nele de humano subsiste. Anomalias houve sempre. Mas como anomalias.
Sem leitura filosófica, salvo as mais vulgarizadas de segunda ou terceira mão, abro uma página de 1856 de um livro de notas de Irineu Pinto, mergulho na devastação do cólera morbus a atingir 25 por cento da população de então. A capital dispunha de dois médicos, entre eles um Poggi, ancestral de Arnaldo da farmácia. A ciência se resumia neles, e num acadêmico que acabava de chegar da Bahia. Um lazareto é construído na Ilha da Restinga. Tudo que o governo pôde fazer foi iniciar a construção do cemitério, secundando o exemplo, no interior, do Padre Ibiapina, que conclui o de Soledade. Mas se não havia as mãos de todo mundo para ajudar, havia a consternação.
Sem rádio, sem televisão, sem inserção global, o que a família humana fazia? Baixava a cabeça sobre a sua condição. Não precisava proibir festas mundanas. Todo dia era dia de trevas, cada igreja uma estação de via sacra, os mortos respeitados pelos vivos. A que filósofo devo perguntar: o homem é o mesmo?