Conheci Flávio Tavares adolescente, e começamos a namorar quando eu tinha 15 anos, já no primeiro olhar, e nos casamos, eu com 19 e ele com 23. Duas crianças. Ficava encantada ao vê-lo pintar. Surgir as cores, formas, vida. Durante 10 anos, acompanhei essa experiência sensorial/gestual/orgânica de outra pessoa. Ainda em formação da minha própria identidade intelectual, eu absorvia as coisas da imaginação, tinha espasmos de felicidade ao ver uma tela surgir e sofria ao vê-lo criar ou não criar, mergulhar no seu trabalho. Ele, muito jovem e com muitas inquietações sobre o desenho, a pintura, sua identidade, suas crises de criação, tão normais a quem vive nessa e dessa vertigem. Até hoje sou plugada nesse processo seja de qual arte for.
E nessa vida de artista plástico, tudo acontece na mente de quem se mistura às tintas. Flávio era inundado pelas musas, flores, ramas, pela história familiar (sua mãe, pai e irmãos, sua avó), pelas suas mulheres imaginárias e/ou reais, pela fauna e flora brasileira/nordestina, pela Literatura (tantos nomes como José Lins, Augusto dos Anjos e Ariano Suassuna, só para citar alguns). Havia também as sombras, o inferno, o sofrimento, o lado sombrio da vida, as amarguras, os demônios todos (e quem sabe os dele principalmente!), e violências tantas (até porque vivíamos os tempos de Ditadura na década de 70).
Confesso que essas figuras assombrosas me incomodavam. Ainda não tinha a percepção de sentir a magnitude da "feiura" como conceito estético. Muito mais me encantavam os azuis, os pássaros, as casas simbólicas, os espaços imaginários e vertiginosos. O tempo! Mas, somos feitos da matéria ambígua e paradoxal e temos a luz e sombra dentro de nós todos. Feliz do artista que consegue combinar esse percurso, dando vazão à sua imaginação e expurgando ou não seus demônios e seus anjos.
Em maio de 2017, Flavio fez uma exposição monumental na Usina Cultural Energisa, intitulada "A linha do sonho", tendo como homenageado seu querido amigo e tutor artístico Hermano José. O evento foi apresentado pelo Ministério da Cultura, com a curadoria do também artista plástico Dyógenes Chaves. Com fotografias do seu fiel expert e fotógrafo que dispensa adjetivos, Antonio David, e texto primoroso de apresentação do artista Raul Córdula – “Pintar é congelar a labareda”.
Nesse trabalho ele experimentava uma nova forma de pintar. Tomando conhecimento e gosto pela caneta-pincel, cria um traço único ininterrupto. Como se a linha, o bico, o contorno não pudessem parar. A pressa da tecnologia o invade nesses desenhos de uma sentada só. Não, não é um conto (como dizia Cortazar!). É um ponto! Um ponto de onde tudo começa. E a partir desse lugar, pássaros, pavões emplumados, onças à espreita, touros Almodovarianos, peixes, serpentes, bichos de todos os monstros, suavidades plenas, mulheres douradas, em fundo branco, preto, e muitos vermelhos, e, claro, as danças das sereias e os mergulhos profundos – na água, no vento, no ar.
Mergulhar nas profundezas do ser profundo de cada um. Flávio mergulha! Nas cavalgadas do fio da navalha. Fio único da mulher sozinha. Do des-equilíbrio. Dos limites tênues entre um lado e outro. Entre um pássaro e outro. Entre um mergulho e outro. Que êxtase! De quem admira e contempla!
O dia da exposição foi uma festa. Não só das artes plásticas. Lá estava uma cidade inteira. Profissionais das Artes, jornalistas, autoridades, socialites, uma geração já meio nostálgica – da Rua da Palmeira, onde Flávio viveu a vida familiar, com seus pais e irmãos), até os dias de hoje, quando jovens aprendizes o visitam em aulas vivenciais no seu ateliê-casa, no Altiplano. Sim! Amigos da vida toda também se cruzavam na noite. Gente do Liceu, dos cine-clubes, das Lourdinas, da minha adolescência também, dos cinemas, da Lagoa, enfim, um encontro com a memória de várias vidas de cada um e de todos nós. A festa de Flávio não é só na pintura, mas nas amizades, no afeto maior que une pessoas que se amam vida afora.
Hoje Flávio transita com maestria, unanimidade, e muitas certezas do seu traço, seu gesto imperioso, por entre técnicas do óleo, desenho, guache, crayons, e mais recentemente com a tecnologia das cores cítricas e ininterruptas. Quando folheio seus livros/coletânea dos quadros, fico assustada como ele pintou tanto ao longo das suas sete décadas de vida. Uma vida na prancheta! Lambuzado dos vermelhos magenta e das terebentinas. Desde menino rascunhando, herdado do seu pai Dr. Arnaldo, o gosto pelo bico de pena, Flávio é uma imensidão de obras que se confundem com ele mesmo, com a cidade, e com cada um de nós que acompanhamos seu trabalho há tantos tempos. Sempre me emociono quando vejo seus traços e cores. Mesmo depois de tantos anos e tantos caminhos cruzados, contemplo sua arte que só cresce, com uma intimidade que só poderia ter raízes no tempo e no amor.
E fico aqui com meus botões, a pensar nesses azuis, as cores mais quentes; nos vermelhos, fraternos e apaixonantes; e nos brancos e dourados – e em como suaves são as noites!