Na aldeia em rápida transformação, a oficina de ferragens chegou para personificar o primeiro profissional liberal da história – o ferreiro –, a quem, já de um bom tempo não era incomum tivesse a ausência perdoada durante jornadas periódicas de trabalho – a que estavam todos sujeitos –, mas que passava agora a ser nominalmente dispensado de quaisquer dos inúmeros e frequentes mutirões impostos pelas novas necessidades coletivas, que tinham se tornado uma imposição autoritária dentro do novo sistema de poder centralizado.
Além dos muros do palácio, é provável que mais ninguém fosse socialmente importante quanto ele, que, bem antes disso, vira-se frequentemente atarefado entre o peso e a dureza de sua matéria-prima e uma criatividade que a todos devesse talvez parecer advinda de sonho mágico, mas que na verdade fora gerada e partilhada quase que indistintamente por ele e uns poucos chefes de família da aldeia agrícola, de modo a ter o ferreiro papel fundamental nesse processo, pois havia preparado e testado aqueles primeiros e revolucionários insumos da agricultura. Os arados e enxadas.
Agora, porém, a demanda sobre a sua artesania se acentuara ao ponto de lhe ser difícil atendê-la sem lembrar-se do mal e do sangue a ser derramado por outros homens, já que ao mesmo tempo em que de sua lavra saiam ferramentas como a pá e a foice, via-se também obrigado a forjar e ajustar, in loco, ferraduras de cavalos trazidos por soldados do tirano, assim como armas e escudos guerreiros. Mas, como pode alguém moldar uma chapa de ferro sem antes possuir um martelo de ferro com que faça isso, um martelo previamente moldado?
Uma pergunta simples, mas, de importante, que nos leve a pensar. Em nossa degradante condição de prisioneiros, porém, não nos fora dado, a nós, porcos, qualquer possibilidade de observar em detalhes os acontecidos além da pocilga, embora seja razoável supor que, em seus primórdios de revolucionária tecnologia, aquele oficial do ferro alimentasse a pretensão não só de conservar quanto de aumentar os privilégios já alcançados num mundo que começara a se fragmentar em classes sociais, desde quando, em torno da figura do soberano, surgira uma guarda pessoal e uma miríade de auxiliares que vinham a se constituir em autoridades menores. Uma elite social formada por diferentes especialistas, acantonados por diferentes cômodos daquela fortaleza interna que se plantara intramuros na futura cidade.
Para o ferreiro de então, a ocultação dos segredos da técnica foi certamente a maneira mais eficiente de garantir monopólio da atividade. Para tanto, precisava pôr-se a salvo de curiosos, e, quer venha a ter ele reclamado para si e seu ofício uma exclusividade espacial, quer lhe tenha sido esse espaço privativo não apenas concedido, mas imposto pelo próprio poder (à essa altura cioso em guardar o que certamente se constituía, pela sua importância, em segredo de Estado), conclui-se que, por uma dessas razões, ou concomitantemente às duas, o ferreiro acabou fixando seu misto de residência e indústria numa propriedade privada.
Mas os segredos do ferro certamente não incluíam nenhum dos procederes decorrentes da forja, das tenazes, bigornas ou martelos, uma fase final de fabrico desde sempre exposta a todos, e, por certo, diziam respeito à fase inicial de fundição, quando características do fogo, ponto de fusão dos metais, composição das ligas, manuseio da lava, etc. tinham para todos os efeitos se tornado segredo de um embrião de Estado cuja origem e desígnios posteriores fundamentavam-se na beligerância. O acesso a esse conhecimento tornara-se restrito, e poucos podiam dispor da matéria prima beneficiada, em forma de lingotes.
Por seu lado, a sanha guerreira já não demandava grande esforço na própria manutenção, como nos tempos da caça, vez que tinha conseguido transformar os antes revolucionários agricultores em súditos temerosos e com cotas a cumprir no sustento de seus opressores. A paga pela segurança os tinha colocado – dali e por milhares de anos em diante – estagnados matéria e espiritualmente, uma vez que a educação lhes fora cortada devido às mudanças estruturais operadas de fora para dentro na família, onde a mãe, nos tempos do matriarcado representara importante papel educador, e agora via-se em condição de subalternidade, enquanto a religião, antes um culto doméstico e amoroso, lhes era agora imposta numa falsa verticalidade, descida do alto. Só que do alto do poder terreno, emanante de um tirano e de um jogo meticulosamente calculado que, por iniciativa própria, se elevara ao panteão dos deuses.
Mas, por uma estranha ironia, o inimigo imaginário (mola-mestra de uma estratégia paleolítica de poder bem sucedida) não tardaria a se converter em um ser não apenas concreto quanto perigoso, por que uma vez situado além dos muros da aldeia, passara a ser ele próprio uma muralha e um obstáculo a ser emulado pelo impulso comum de expansão que se tinha disseminado pela vida aldeã, quando paleolítico e neolítico, por fim, deram-se as mãos para apagar de vez as diferenças do passado, e para tornarem-se ambos parte indissolúvel da nova constituição da aldeia.
A agricultura havia quebrado o isolamento entre humanos com a invenção das trocas, e essa prática se disseminou entre eles chegando até mesmo a algumas tribos nômades que viviam do pastoreio. Mas as medidas protetivas dos caçadores falsamente enclausurados veio anunciar ao mundo a invenção da guerra, e logo o rio, com sua condição vital para a existência tanto do comercio quanto da agricultura, passou a ser objeto de disputa, e o controle de seu curso d’água o pricipal motivo para aquela.
Muito antes disso, durante a fase média de vida selvagem, transcorrente por centenas de milhares de anos, nos quais deu-se a enorme conquista tecnológica do domínio do fogo – por quem, antes desse feito decisivo podia ser considerado um animal pré-humano –, já havia o homem incorporado o peixe assado ao seu cardápio basicamente de frutas e raízes. A proteína concentrada desse alimento desempenhou importante papel no aumento de tamanho de seu cérebro, e o fato de seguir o leito dos rios em busca dela, levara a espécie a espalhar-se pela terra.
Agora, porém, tanto Interna quanto externamente, a vida dos humanos em sociedade passava por grandes e rápidas transformações. Internamente, a aldeia se expandira depois da criação de uma corte com seus indispensáveis – para sua própria sobrevivência – equipamentos de repressão social, controle da ordem e da produção, de modo a que, muito em breve a cidade em formação já não coubesse nos limites traçados por seus muros, quando já então preparava-se para se transformar numa agitada Cidade-Estado, crisálida da primeira civilização humana.
A família, antes soberana em seus atos, se reconhecera através de milhares de anos por graus de parentesco que normalmente sobreviviam por um tempo mesmo quando a real estrutura social ambiente já lhe houvesse modificado. No tempo ora narrado, a ascensão de ideais guerreiros acima de preocupações domésticas, estava roubando ao pai e a mãe qualquer poder na condução dos destinos da família, e isso apontava grandes modificações futuras na estrutura social como um todo.
Nesse período final do barbarismo, trazido que foi em grande parte pelo invento da Guerra, e desde aqueles tempos pré-históricos de vida ainda selvagem, a formação consanguínea da família viera se modificando até se constituir na gens – um agrupamento maior –, e esta que, junto com uma grande inovação que se desenhava para futuro próximo, iria permitir a passagem da Barbárie para a civilização, através – e nem podia ser diferente – da invenção da escrita fonética e a disseminação desse saber entre a massa popular.
A dilatação espacial da antiga aldeia versus sua contenção por muros, trouxera grande complexidade para efeitos do próprio gerenciamento, quando o antigo conselho de sábios, que fora em si o que mais se assemelhara a um governo na aldeia primitiva, já havia se diversificado pelos vários ramos administrativos exigidos pela nova sociedade.
O aumento da população respondia perfeitamente ao trabalho do arado que elevara significativamente a produção, ao possibilitar a extensão do cultivo pelos campos. Quando necessário, o machado de ferro e a pá, contribuíam com o desmatamento de partes da floresta, para aumento desse cultivo. Mas a ideologia de expansão guerreira veio para implodir qualquer relação de proporcionalidade entre as duas coisas.
Para dentro de seus muros, questões como a administração da riqueza, com seu confisco de tributos; regulação da herança dinástica; demarcação e legitimação de terras, das quais famílias de agricultores iam sendo expulsas, e, uma vez afastadas para a periferia, começavam a formar os aglomerados dos primeiros bairros proletários; essas e outras exigências estavam a exigir a invenção de uma escrita, já que a propriedade privada, recentemente inventada, dependia de um registro de si mesma e de uma outorga, o que fez com que o corpo de escribas da corte começasse uma divisão interna de seu trabalho. Uma escrita até então reservada à corte palaciana.
Uma parcela dos escribas se designou para essa tarefa que ia da agrimensura ao registro de pequenas edificações, com um carimbo de autenticidade a princípio emitido com logomarca do poder central, e depois por eles mesmos, agora transformados em notários. Dessa forma surgiram os primeiros tabeliões, no berço ainda de sua célula-mater: a propriedade privada.
Outra parte do corpo de escribas se convertera em contabilistas que estipulavam o valor dos confiscos sobre a produção, e outra que guardava a sete chaves o segredo daquela escrita fonética que estavam a desenvolver, enquanto rasuravam caracteres experimentais sobre pequenos tijolinhos de barro. Esta terceira formação de escribas personificaria ali um prematuro Ministério da Educação, uma dedicação administrativa finalmente compreendida pelos altos funcionários do Comandante Geral como inevitável, imprescindível para o próprio avanço das ambições monárquicas. O que teria propiciado uma mudança radical como essa na cabeça do tirano?
Na fase final do Barbarismo, para muito além dos antigos limites, a aldeia fortificada já havia alargado seu poder e subjugado muitos dos povos encontrados ao longo do rio que banhava a aldeia originária. Porém para alimentação das hordas guerreiras, para o comercio de trocas entre vários produtos e produtores ao longo das terras agora conectadas, requeria-se um aumento considerável da produção de víveres e suprimentos de toda ordem. E os conselheiros não tinham dúvidas quanto a tais necessidades, tão prementes para manutenção da estrutura social na qual se inseriam, razão porque, lenta e minuciosamente deram à luz o primeiro grande projeto econômico da História humana, através do primeiro planejamento de longo prazo que a História conheceu, sem falar nesta que deve ter sido talvez uma tarefa ainda mais árdua: convencer o tirano guerreiro da aplicação desse plano.
O que se planejava na verdade era um enorme salto de qualidade nas providências para a estabilidade material do nascente império, e este plano jamais se teria completado sem que a expansão territorial os tivesse levado a conhecer o gigantesco estuário dos rios Tigre e Eufrates. Dois rios que, ao se encontrarem próximos à foz do Tigre, transbordam por ambos os leitos e vão gerar o mais vasto pântano até então conhecido.
Pelo fato de sua proximidade com o mar (no golfo pérsico), a incalculável área fertilizada decorrente do acidente hídrico, acabou saltando aos olhos da corte pelo seu potencial produtivo em larga escala. Aquilo era a resposta para o rol de carências que a recente expansão do reino estava a exigir das equipes conselheiras, já que nos pontos onde o rio se interiorizava, a interrupção ou modificação de seu fluxo para um grande trabalho de irrigação de terras certamente geraria escassez e problemas políticos com populações ribeirinhas de um império agora unificado por conquistas recentes.
Mas a gigantesca área naturalmente fertilizada ia demandar um igualmente gigantesco esforço de mão-de-obra, bem como trabalhos de feitoria para controle dessa mão-de-obra, e planos, muitos planos. Mas para uma plantação que se queria em dimensão quase desmedida, contanto que resultasse em grande superávit alimentar e consequente riqueza para o reino, viram-se na necessidade de detalhar esse plano, e para tanto os conselheiros se depararam com uma inevitável situação de ter que criar novas funções de controle e direcionamento da força de trabalho.
Começaram prevendo que aquela obra iria se arrastar por muito mais tempo que o demandado por qualquer trabalho coletivo anterior, e que a gente do povo – nas costas de quem caía quase que a totalidade do esforço – não teria, mediante simples palavras, como entender a lógica de um esforço tão pesado, cujo resultado final a ser alcançado somente se daria muito depois de transcorrido os tempos de colheita – o calendário anual da flora.
Na sociedade prestes a sair da barbárie, somente uma pequena elite cortesã entendia uma necessidade nunca antes existente. O campo fora mapeado e o processo de drenagem do pântano tinha sido esquematizado por aquele que viria a ser o primeiro engenheiro da história, e filho da agricultura como foi, não poderia deixar de ser engenheiro agrônomo e hidráulico. O planejamento exigia, além do mais, que cada um soubesse a parte que lhe tocava no trabalho, e que soubesse ler as instruções contidas na escrita cuneiforme. Iniciou-se então um processo de alfabetização em massa.
É consenso entre nós porcos que a escravidão de um ser humano por outro tenha irrompido entre humanos aí, no momento dessa grande encruzilhada do destino. Era quase inacreditável assistir a uma avalanche tão grande de homens, mulheres e até crianças, chegados em grandes bandos, a maior parte pelo Eufrates, no colo de barcos feito de juncos e de cascas de árvores calafetadas. Dividiam espaços com montes de utensílios de ferro, redes de pesca e de dormir, enormes quantidades de potes e vasos de cerâmica, cestos, facas, tições, montanhas de peles...enfim, davam a impressão de que tinham trocado seu lugar de origem por aqueles pântanos perdidos, mas só aparentemente desabitados.
Para nós, porcos livres, vivendo em estado naturalmente selvagem, aquela invasão de um habitat que era o mais próximo de um paraíso que porcos podem supor, nos apanhou de surpresa, e para a nação suína veio significar mais um desastre causado por humanos, só que em proporções muito maiores que da primeira vez. Daquela primeira convivência entre as duas espécies, e que resultou no aprisionamento de parte de nossos irmãos, somos um tanto culpados por termos provocado a aproximação. Porém a nova situação era completamente diferente: dessa feita eram os homens a invadir nosso habitat. Sem levar em conta a imensa população de peixes, répteis, lagartos e outras espécies menores, representávamos então, na escala dos animais de médio porte uma espécie majoritária naquele lamaçal sem fim, e tínhamos atingido um estágio de plena adaptação àquele ambiente que, no transcorrer de aproximados hum milhão de anos, havia exigido de nós bastante acrobacia evolutiva. Só não contávamos com a ocupação massiva e repentina feita pelos humanos.
Em grandes bandos, tínhamos a capacidade de enfrentar quaisquer dos grandes predadores do local, ursos e tigres, por ex., com exceção talvez dos gigantescos crocodilos que, disfarçadamente subiam para o estuário do rio, provenientes tanto do leste asiático quanto do Norte caucasiano, no sentido das respectivas embocaduras do Eufrates e do Tigre. Esses monstros arrastavam-se ocultos na lama, para fazer uma aparição descomunal e súbita acima da superfície, quando, num bote certeiro, faria de algum de nós sua presa. O susto provocado era tanto que causava uma debandada no grupo, e nada mais era possível fazer para salvar da morte aquela pobre vítima.
Nossa grande adaptação aos alagados e pântanos nos concedera as peculiaridades que ainda hoje ostentamos no corpo e em nossa relação anfíbia com o meio ambiente. Um exemplo é a grande flexibilidade de quem teve os ossos amolecidos pela água, e hoje, infelizmente, faz de nossas costeletas um prato oferecido por restaurantes espalhados pelo mundo, sem falar nessa capacidade que temos de penetrar em um lago, sem nadar, e depois de um bom tempo debaixo d’água, cruzar o fundo lodoso e sair na outra margem. Isso até pode assustar ‘‘huminos’’ que presenciem a cena, mas para quem, como estes, capazes foram de criar equipamentos com que descer a abismos marinhos os mais insondáveis, e voar muito mais rápido que os mais rápidos passarinhos, tudo isso acaba sendo nada. Quanto a nós, suínos, nunca voamos, é verdade. Sabemos, porém, das voltas que esse mundo dá.