Rubens e Velázquez, Aleijadinho e Athayde, Vivaldi, Bach e Padre Maurício, fugas e contrapontos, Niemeyer e Bramante, pedra-sabão e carrara, as anamorfoses e elipses, os labirintos e os montes sacros, a “Passarola” do Padre Gusmão e “O memorial do Convento” de Saramago — em tudo Romano de Sant”Anna dá seu toque revelador, seguro, simples, eruditíssimo. É incrível a desenvoltura com que nos passa os segredos estruturais de “Tutaméia” — de Guimarães Rosa — e do “Avalovara” — de Osman Lins. A precisão com que nos fala da genialidade do Padre Vieira e do rigor de João Cabral de Melo Neto, tornando-os tão curiosos quanto o ocultismo, hermetismo, a cabala, a numerologia, a matemática e a criptografia seiscentista, envolvendo nisso Galileu e Leibnitz, Hermes Trimegistus e Sextus Empiricus. É com surpreendente intimidade que ele discorre sobre a inquisição em Portugal e no Brasil, sobre o Sebastianismo n"Os Sertões" de Euclides da Cunha, no “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber, e em “Pedra Bonita”, de Zé Lins, da mesma forma como nos mostra as lentes, relógios, espelhos e câmaras escuras influenciando a mentalidade de toda a Europa, e mostrando-nos, de passagem, como a espiral das galáxias entrevista pelos telescópios se disseminou nas volutas arquitetônicas — do Palazzo Zuccari às igrejas de Vila Rica — e nos “trillos” de Rossini e Mozart.
Aí Affonso nos coloca nas primeiras poltronas para assistirmos ao surgimento da ópera, do balé, dos castrati, para ver o que foram as “bachianas” de Villa-lobos, a politonalidade moderna do “Rashomon” de Kurosawa. Mostra-nos, ao mesmo tempo, o teatro extravasando para ruas, praças, para as festas populares, procissões, guerras, exibiu-nos o famoso Triunfo Eucarístico de Ouro Preto e o Círio de Nazaré, coloca-nos na intimidade da retórica da sedução de Madame Rambouillet e do ser e do parecer em Heidegger, Foucault, Derrida e Barthes, com idêntico encantamento levando-nos às tramóias cênicas e trompe-l’oeil do “La Vida es Sueño”, de Calderón de La Barca, voltando-se outra vez para coisas da sensualidade, como a inconstância amorosa no teatro e na ópera
No completo, vivo, multifário universo do livro, Affonso Romano se sente igualmente à vontade para pontuar a respeito da arte gorda e da arte magra — de Manoel Botelho e Jorge Amado, Di Cavalcanti e Portinari, Rubens e El Greco — levando-nos à peste na Europa e ao “Triunfo da Morte” de Brueghel, derramando de sua vasta cornucópia, ainda, a clareza que se pode ter sobre a relação do urbanismo barroco e o absolutismo, os miríficos projetos de Nassau no Recife, a mestiçagem estética nos Trópicos, a metarraça de Gilberto Freyre, o criolismo e a antropofagia na América Latina.
É claro que isso tudo tem demais a ver conosco. Como ele nos diz, somos um povo que se debate contra a racionalidade do quadrado e do círculo — marca do classicismo — e que encontra na curva e na elipse do barroco a nossa forma natural e prazerosa de ser. A oportunidade única de se ter um autor cultíssimo e de extrema sensibilidade - como esse — dispondo-se a nos desvendar... a máquina do mundo em que vivemos... é imperdível — para todos.