“Um homem médico é, pois, igual em valor, a muitos outros, para retirar dardos e aplicar fármacos calmantes.” (Idomeneu a Nestor, em plen...

A medicina entre o clássico e o popular

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“Um homem médico é, pois, igual em valor, a muitos outros, para retirar dardos e aplicar fármacos calmantes.” (Idomeneu a Nestor, em plena batalha entre gregos e troianos. Ilíada, Canto XI, versos 514-5)

As palavras medicina e mezinha têm a mesma raiz etimológica. A primeira forma é erudita, proveniente de medicina, medicīnae, cuja origem, no latim, está ligada ao verbo depoente medeor, por sua vez, originário do verbo médio grego μέδομαι (médomai), ambos com o sentido de cuidar e tratar, alongando o significado em grego para também proteger. A segunda forma, mezinha, é uma corruptela da primeira, sendo, hoje, um arcaísmo, com sua datação em textos remontando ao século XIII, mas ainda muito empregada nas regiões mais distantes do mundo urbano. Registra-se, ainda, a forma meizinha, produto de uma ditongação natural, para a oralidade. O importante a guardar, independente da forma, é que, em princípio, o médico e a medicina encontram-se na esfera do cuidado, do tratamento e da proteção.

Primeiro falemos da medicina. Os primeiros registros no mundo ocidental, sobre o cuidado e sobre quem cuida, se encontram na Ilíada, o famoso poema épico homérico. No catálogo dos heróis (Canto II, versos 729-33), os irmãos Podalírio e Machâon são designados como bons médicos e filhos de Asclépios, o deus da medicina. Os termos utilizados para os dois irmãos são ἰατέρ (forma poética para designar o médico, o que cura; existindo ainda a forma ἰατρός) e ἀγαθός (agathós), com o significado de bom. Quando Menelau é ferido por uma flechada do Troiano Pândoro, seu irmão, o poderoso Agamêmnon, manda seu arauto chamar o excelente médico (ἀμύμονος ἰητῆρος, amúmonos ietêros), Machâon, filho de Asclépio (Canto IV, versos 193-4). Assim, ele também age, quando novamente Menelau é ferido em batalha, no Canto XI (versos 504-520), com Machâon aparecendo, mais uma vez, como o médico perfeito ou excelente.

Digno de registro não é o fato de haver médicos em campo de batalha, em um poema composto no século VIII a. C., documentado apenas a partir do século VI a. C., mas cujos fatos remontam ao século XII a. C. Mais importante ainda é ver como a medicina sai do âmbito de um saber mítico e se transforma em técnica, revelando, portanto, os primórdios de uma ciência. Para curar Menelau, Machâon aplica-lhe sobre a ferida, após sugar o sangue, os φάρμακα (fármaka, remédios, poções) aprendidos com o centauro Quíron (Canto IV, versos 218-219).
O mesmo Quíron que havia ministrado esse conhecimento a Aquiles, que os repassou, por sua vez, a Pátrocles. A transmissão do saber médico por um centauro a um humano está no plano mítico. Já a descrição de uma técnica encontra-se no campo do saber científico, que o grego chamava ἐπιστήμη (episteme). Episteme, literalmente, significa “algo que se erige sobre”. Assim é o saber. Ele se erige sobre uma técnica, mostrando-se visível para quem o queira acessar. É, pois, com a técnica e com os fármaka do centauro que o herói Pátrocles, guiado por Eurípilo, promove a sua cura: abrir a coxa, retirar a flecha, lavar com água morna o sangue negro, espargir os remédios brandos (ἤπια φάρμακα ἐσθλὰ) e aplicá-los por cima da coxa, para apaziguar a dor (Canto XI, versos 828-848).

Nos exemplos acima, constatamos as referências a Asclépio e ao centauro Quíron. Podalírio e Machâon, filhos de Asclépios, exercem suas funções como médicos guerreiros (ἰητρὸς ἀνὴρ) na batalha contra Troia. Quíron, como já vimos, é o centauro conhecedor da medicina e da cura, que ensinou o seu saber aos citados heróis, Aquiles e Pátrocles. Lembremos que a raiz do nome Quíron (Χείρων), segundo o etimologista Pierre Chantraine, é possivelmente a mesma de “mão”, em grego χείρ. Tal palavra designa não apenas a mão ou o punho, mas pode designar, a escritura e os valores técnicos diversos, daí o termo cirurgia (χείρ + οὐργός), significando trabalho feito com as mãos. Cirurgia, inicialmente, designava o trabalho do operário, o do artista ou o do médico, depois o vocábulo restringiu-se ao uso médico. De qualquer forma, a primeira concepção do ofício médico é a de um trabalho para ser feito com as mãos, como Pátrocles faz, curando a ferida de Eurípilo. E a concepção desse trabalho manual, no ocidente, surge do mito grego.

Se Quíron era o bom centauro, fera divina, mas cheio de amor pelos homens, como diz o poeta Píndaro (Píticas, 3, 5), versado em várias artes, dentre elas a cura e a cirurgia, Asclépios foi seu discípulo, levado pelo próprio pai, Apolo, para que lhe ensinasse a arte de curar os males dolorosos dos homens (Apolodoro, Biblioteca, Livro III; Píndaro, Píticas, 3, 8 e ss). Retirado pelo próprio pai, o deus Apolo, de dentro da barriga da mãe, a ninfa Corónis, antes que ela fosse consumida pela pira fúnebre, Asclépios vem ao mundo através da primeira cesariana de que se tem notícia. O centauro Quíron, a quem foi confiado, ensinou-lhe a arte da Medicina. Excelente aluno, Asclépios foi além e descobriu um meio de ressuscitar os mortos, através do sangue benéfico das veias do lado direito da Górgona, a Medusa. Um dos muitos a ser ressuscitado por Asclépios foi Hipólito, o filho de Teseu. Zeus, com medo de que as ressurreições alterassem a ordem do mundo, fulminou Asclépios com um raio e o transformou em uma das trezes constelações que formam a eclíptica solar, o Serpentário ou Ofiúcos; literalmente, o que segura a serpente.

A origem da serpente e da constelação encontra-se no mito seguinte, narrado por Higino, bibliotecário de Augusto: tentando ressuscitar Glauco, o filho de Minos, Esculápio (nome latino de Asclépios) mata uma serpente que aparece. Vendo surgir uma outra serpente com uma erva na boca, cujas propriedades ressuscitam a serpente morta, Esculápio usa a erva para ressuscitar Glauco, sendo a serpente colocada sob a sua proteção, como símbolo da renovação da vida (Astronomia, Livro 2, 14).

E a meizinha ou mezinha? Tida como medicina caseira, sobretudo como líquido medicamentoso ou poção, a mezinha não deixa de ser um φάρμακον (fármakon), ainda que não aplicado por um ἰατρός, médico conhecido. A palavra fármakon em grego tanto se aplica a remédio, quanto a veneno e a poções, a diferença está na dose e no objetivo do seu emprego. Portanto, o seu sentido pode ser benéfico ou maléfico. Assim, é que em dois episódios da Odisseia, Canto IV (versos 219-21) e Canto X (versos 316-7), vemos como se aplicam distintamente estes termos, um para cura e consolo da dor, outro para transformar homens em animais, termos usados, respectivamente, por Helena a Telêmaco e por Circe a Odisseu.
A diferença é que Helena aprendera os fármaka calmantes e curativos (φάρμακα ἐσθλὰ, Canto IV, verso 230), que lhe ensinara Palidamna, no Egito, onde, segundo a própria Helena, cada um é médico. Circe, feiticeira, aplica os φάρμακα para causar os males (κακὰ, Canto X, verso 317). Não falta sequer o canto curativo, aplicado como meizinha, no Canto XIX, versos 455-8, para deter o sangramento de Odisseu, ferido pelo javali que caçara; canto que nos aproxima muito da ação das rezadeiras e benzedeiras, ainda em ação.

Finalizaremos com o encontro do mito e da ciência médica. Há pelo menos dois momentos curiosos na mitologia grega que se revelam carregados de um conhecimento que extrapola o fenômeno mítico e deixa entrever a intuição dos antigos sobre a fisiologia humana. O primeiro é o mito de Prometeu. Ο titã filho de Jápeto, após tentar enganar Zeus, ofertando-lhe os ossos dos animais sob a gordura, no primeiro ritual oferecido aos deuses, vê o poderoso senhor do Olimpo privar os humanos, caros a ele, Prometeu, do fogo sagrado, essencial para a vida. Prometeu, então rouba uma fagulha do fogo de Zeus e dá aos humanos, ensinando-lhes a técnica de sua preservação, concedendo-lhes, assim, certa independência em relação às divindades. Acorrentado às escarpas da Cítia, como punição, por todos os séculos, Prometeu sofre dolorosamente com uma águia, a ave consagrada ao grande senhor do Olimpo, a comer-lhe diariamente o fígado, que se regenera.

O segundo fato diz respeito ao mito de Zeus e de Leda, rainha da Lacedemônia ou Esparta. Decidido a pôr fim à impiedade troiana, Zeus escolhe Leda como um dos instrumentos de sua Thêmis (θέμις), a justiça divina, para acabar com a cidade de Troia. Vendo Leda banhar-se, Zeus toma a forma de um cisne e com ela copula, engendrando nela sua descendência. Como Leda era esposa de Tíndaro, o rei de Esparta, ela engravida dos dois: do marido e do amante. Leda, então, põe dois ovos em que se encontram, respectivamente, Castor e Clitemnestra, filhos de Tíndaro, e Pólux e Helena, filhos de Zeus. Helena, como sabemos será o pivô da famosa guerra de Troia.

O que nos espanta – em grego existe uma divindade para isto, que se chama Θαύμας (Tháumas, v. Teogonia, verso 265) – e nos fascina no estudo da cultura grega é perceber como, num mundo do princípio, totalmente arraigado à religiosidade, em que a ciência ainda não eclodiu, o homem de então pôde intuir que o fígado era um órgão com capacidade de regeneração e que seria possível a uma mulher, considerando o artifício de Zeus, conceber, em uma mesma gestação, filhos de homens diferentes, como acontece hoje pela inseminação artificial. Seja medicina, seja mezinha ou meizinha, seja qualquer outra área do saber humano, com que estejamos envolvidos, não dá para ignorar a nossa herança maior, a herança clássica.

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  1. Parabéns Milton pelo maravilhoso e esclarecedor artigo...muito curioso e de fascinante leitura.

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