Vou continuar, é exatamente da minha natureza nunca me sentir ridícula, eu me aventuro sempre, entro em todos os palcos.
Clarice Lispector
Clarice Lispector
Os textos que Clarice Lispector escrevia em jornais na década de 60, entre eles o “Correio Feminino”, chegaram à TV Globo há alguns anos. As crônicas foram adaptadas para o programa Fantástico, sob a direção do diretor Luiz Fernando Carvalho, que já extrapolou sua beleza plástica em outros trabalhos como "Capitu", "Os Maias", "O que querem as mulheres", "Hoje é dia de Maria" e "Lavoura Arcaica", só para citar algumas de suas produções tão diferenciadas na TV aberta.
Quando do lançamento desse trabalho, em 2013, Luiz Fernando comentou sobre o mundo feminino:
“Talvez pela proximidade de gerar uma vida, as mulheres têm uma coragem maior de criar que os homens. Eles estão estabelecidos por dogmas, marionetados por sermões. A mulher tem a linguagem do invisível, do corpo, dos afetos, da imaginação, do silêncio, e das entrelinhas. As mulheres buscam uma dúvida, quebram paradigmas”.
A série televisiva, escrita por Maria Camargo com a colaboração de Carla Madeira, dividida em oito episódios (com cerca de dez minutos de duração cada um), fala para três gerações. Maria Fernanda Cândido é Helen Palmer, a narradora, que só aparece de costas e dá conselhos sobre beleza, moda e sedução às personagens de Luiza Brunet (a mulher madura), Alessandra Maestrini (a mulher jovem) e Cintia Dicker (a adolescente).
Enquanto Helen Palmer dá suas dicas por vezes inocentes/picantes/irônicas, as três mulheres reagem às suas falas, com seus sonhos, limitações, repressões e curiosidades. Os conselhos aparentemente fúteis e superficiais para a década de 60, quando a revolução das mulheres começava a explodir, constituem uma estratégia interessante. Perante a voz um tanto sábia, vivida e tinhosa, as três cuidam de seguir instantaneamente as orientações, o que dá uma velocidade ao ritmo da adaptação, compondo cenas ágeis, coloridas, divertidas, com um ar retrô, tanto nas imagens quanto no texto.
O primeiro episódio fala da Arte da Sedução. No frigir dos ovos, essa "arte" não mudou muito desde os tempos de Ovídio e, guardando as devidas proporções, ainda lida com poder, jogos, e artifícios no olhar, no gesto, e na conquista. Clarice utiliza uma linguagem aparentemente rasteira, pois seus conselhos pretendem atingir o grande público. Ela fala de sutilezas; de que não existem mulheres feias; da capacidade de atração de todas nós; de perfumes; da naturalidade como arma; da calma; dos defeitos aceitáveis. Sempre arremata com algo mais político como: “Seja você mesma!”
Quando fala da moda e dos trajes, é mordaz ao relacionar o desejo de vestir-se com a inconfessável vontade de despir-se. E finaliza dizendo que: “O mundo hoje é da mulher inteligente”. E o amor também, quando reforça o sentido da sedução como arma diária e constante, para que se tenha a contínua descoberta do outro.
A crônica de Clarice é transgressora e ainda atual! As mulheres mais velhas se irritam com o texto, pois a autora utiliza a linguagem da época (meio florida, meio jocosa e cheia de artimanhas); e as jovens talvez não tenham o olhar crítico cronológico para perceber o corte, a ironia fina, a desconstrução de uma fala aparentemente cor de rosa, mas que logo faz um salto para um comentário ácido e eloquente, falando diretamente a uma mulher postada diante das liberdades de comportamento que os anos 60 anunciava.
Essa desconstrução aparece quando, por exemplo, Helen Palmer solta a pérola: “Procurar um vestido é como procurar uma Idea!” E já responde: “A vida não é cinema!”, acrescentando que a “moda também é como trânsito, e que, ao adotar roupas, nós mulheres devemos modernizar nossa mentalidade”. Conclui: “Vestir bem um vestido é esquecer-se dele!”. Tudo isso para compor uma bela mulher, e que essa beleza jamais estará na roupa, mas no sorriso de quem usa.
Num mundo em que a efemeridade se estabelece, e em tempos de conquistas líquidas (Bauman), da urgência e das seduções descartáveis, fica difícil seguir a lógica irônica de Clarice, a falar de coisas banais e aparentemente anacrônicas, mas que têm o seu fileto de crítica e uma pitada de mulher liberal e dona do seu nariz, quando se tem o saber/autonomia da conquista e os pés bem cravados no chão.
O "Correio Feminino" fala de como a sedução da mulher passa, sim, pela beleza, pela roupa, mas principalmente pelo “Ser Mulher”. Para ser amada, a mulher não se deixa depender das aparências. Be my, be my little baby! Ainda falando da Beleza, Clarice é assertiva quando diz que a mulher mais bonita é a mulher feliz, e que se olhar no espelho é encontrar o próprio rosto. Ao falar da vaidade feminina, a escritora vai além, abordando o amor próprio, a autoestima e a identidade. O espelho mágico tem ingredientes como "seja você mesma", "tenha coragem", "veja-se, imagine-se e assuma a sua própria realidade". Seja você! Em tempos de plásticas e da busca eterna e impossível da juventude, nada mais atual.
Ao se perguntar como ser mais bela, o conselho é não ficar somente com o rímel, esmaltes ou artifícios ou botox, mas com ideias de trabalho, perseverança e inteligência.
Para Clarice, a beleza passa pelo dia a dia, pela inutilidade da vigilância contínua, pela realidade e aceitação do tempo como Senhor Absoluto. E adverte: a hora do banho é uma hora para não pensarmos em nada, meditemos pois!
Quando fala dos olhos, rugas, e dos pepinos (sempre longe do marido), ela faz o contraponto de que "mais importante que os olhos é o olhar". Admire-se!. E adverte: sentir-se bonita é mais eficaz do que ser bonita. Ter um olhar otimista na vida evita sulcos na face... A alegria e o entusiasmo são mais importantes do que qualquer creme Lancôme. Ser feliz = ser bonita. Tudo isso não é atual? Nada mais transgressor!
Em outros momentos, os textos falam da “mulher esclarecida” e do “casamento”. Destacam a nossa exaustão — já tão criticada pela feminista Camille Paglia —, um quesito que suscita tantas artimanhas e armadilhas na trajetória das conquistas das mulheres. Na defesa da mulher esclarecida, Clarice a define como aquela que acompanha o ritmo do seu tempo, concluindo que esse esclarecimento, com o cotidiano, nos traz exaustão, pouco tempo e principalmente uma insatisfação, como tão bem expressou a artista plástica Camille Claudel, com a sua inadequação:
“Há algo de ausente que me atormenta”.
Para minimizar a exaustão doméstica, o manual faz uma alusão hilária quando aconselha que: devemos faxinar e nos cuidar; enquanto trabalhamos pela casa, o creme que passamos trabalha pela beleza; a respiração tonifica o corpo. Pintar a casa? este é um exercício de ousadia, diversão e economia. Um curso de confiança em si. Lembrei-me de mim a pintar rodapés, com 8 meses da gravidez de Lucas... Mais recentemente, uma aluna chegou feliz da vida relatando como ela mesma concluiu que era capaz, sim, de pintar e efetivamente pintou sua casa todinha, exultante, num exercício de confiança em sua própria capacidade de fazer as coisas.
Ainda com relação ao trabalho, Clarice dá dicas de: como se apresentar no espaço público; de como enfrentar a concorrência, as críticas, e causar uma boa primeira impressão; ser distinta e não ser tagarela (referindo-se, é claro, à construção milenar do mito da fala inútil e ameaçadora das mulheres). Ela ainda trata dos conceitos arquétipos das sereias, das bruxas e das fofoqueiras.
O "Correio" (dito feminino) incentiva principalmente a leitura, ao mesmo tempo em lembra que, no lugar de engolir sapos, a princesa dos tempos modernos fala sapos! É Clarice já inspirando Marina Colasanti — A Moça Tecelã — e também Thalita Rebouças — a escritora das princesas e suas desconstruções. O texto ressalta que a leitura enleva pensamentos e que um bom livro pode mudar tudo! Exemplos desse pensamento são encontrados nos filmes “Balzac e a Costureirinha Chinesa” (2002), “Clube de Leitura de Jane Austen” (2007) e “As Horas” (2002). Recentemente, ganhei uma camiseta de uma amiga, vinda de Nova York, que diz: “Uma mulher que lê é uma mulher perigosa!” Que assim seja!
Para o "Correio Feminino", uma mulher moderna é companheira e não escrava. Uma mulher multifacetada. A ciência corrobora o que já sabemos há séculos: que somos múltiplas, nosso cérebro articula-se com os dois lados, com montes de fios e podemos dar conta da cozinha, da filosofia, dos filhos, do jardim, e das estrelas... Multiplicidade de assuntos, polifonia, sincronicidades, são termos que já dominamos desde as cavernas. E damos choque, falhamos e sofremos curtos-circuitos. Clarice fala disso tudo com maestria, jocosidade, aparente inocência, ironia, e beleza. Um talento que com certeza migra da sua arte na literatura dos contos, crônicas e romances, nos quais a construção e técnicas literárias explodem de ambiguidade, mecanismos de manipulação com o leitor e subversão da ordem.
Quanto ao casamento, ela é categórica: “Devemos ir à caça da felicidade”. E ainda arrisca a dizer que o casamento deveria ser naturalíssimo e ter uma forma serena. Nesse momento, o fundo musical é “Ne me quite Pas”... para inflar as receitas de bolo, pudim e o desejo de acertar (viu, Laura Brown?). Clarice sugere que deveríamos ter prazer nas tarefas domésticas, para tornar a vida mais leve e experimental, e que a vida é como o sol, renasce todo dia... O conselho é tornar brando os deveres para nos aliviar do que está dentro e fora de nós mesmas. Caso contrário, o sonho impossível de príncipe perfeito, casa perfeita e vida perfeita poderão levar ao tédio e estragar tudo. Reclamar muito? Desistam, Mulheres. Mas não esqueçam da arte de discordar jamais. Cuidemos pois do amor que possuímos. Se somarmos as incompreensões com o olhar amoroso e os estímulos à vida a dois, teremos, com certeza, uma aventura maravilhosa.
Para um conselho do "Correio Feminino", lá nos anos 50/60, Clarice arremata suas falas tratando de imperfeições e de tentativas. Diz que não existem coisas impossíveis e que fazer um bolo pode ser um sonho, pois os sonhos também se comem. Ah, se a personagem Laura Brown (As Horas) tivesse tido a oportunidade de ler uma dessas colunas da escritora brasileira, nascida na Ucrânia. Quem sabe não teria ido para o Canadá numa busca insana por um “bolo profissional”.
E assim, dos remédios contra os ratos à busca da felicidade, do trivial ao transcendental, Clarice também explode de arte e novidades literárias, com seus Conselhos à mulher que enfrenta mudanças.
Fico no aguardo por alguns "próximos" episódios. Quem sabe virá alguma coisa como “a medida das coisas”, “saber viver nos dias que correm” ou “retoques no destino”.