A manhã de João ficou feliz quando o contido Antenor lhe falou com entusiasmo sobre uma colega do curso de Química que o tinha encantado. Como naquela época ainda havia flerte, apresentação, conversa, aproximação, antes do namoro, levou algum tempo até o domingo em que Antenor apresenta sua namorada a João. Os três conversaram um pouco e João fica de ir à casa de Antenor no mesmo domingo, à tarde. Despediram-se, e João saiu perguntando aos seus botões como alguém poderia ficar encantado com uma “obra” daquelas.
À tarde, entre um assunto e outro, como João e Antenor eram íntimos, João, na primeira oportunidade, pergunta ao amigo como diabo alguém poderia encantar-se com uma mulher tão desprovida de beleza. Apesar de a amizade já ter certa idade e alguma raiz, a pergunta desconcertou visivelmente Antenor, que, sem dar espaço para prosseguimento do assunto, simplesmente respondeu: “Pois é, João, para mim, ela não é bonita porque é linda.” A lei dos sinais ensina que o amigo do meu amigo é meu amigo: amigo de Antenor, amigo de Selma – era assim que se chamava a esquisita namorada. Os três passaram a conviver diuturnamente, viram muitos filmes, alguns shows, participaram de piqueniques, jogaram baralho, ouviram muita música juntos, acamparam juntos... De tanto saírem juntos, os colegas já os chamavam de os três mosqueteiros. Eram amigos de verdade. A esta altura, a feiúra explícita de Selma havia desaparecido completamente. João não a achava bonita nem bonitinha nem mesmo feia. Sequer a percebia como mulher — apenas como amiga (embora quase toda gente afirme, e com razão, que isto não é possível).
O tempo, esse cínico lápis-borracha que apaga e escreve, inexorável, todas as peças, resolveu pregar uma peça em João. O namoro já passava de três anos, e Antenor, que foi vendo lentamente seu amor por Selma encolher, chega à plena convicção de que Selma não era a mulher que queria como companheira e acaba o namoro. Selma, para quem Antenor era o centro de seu projeto de vida, fica completamente desorientada e, para dar vazão a seu sofrimento (ou trabalhar seu luto, como preferem alguns), não poderia encontrar um ombro mais confiável, mais apropriado e mais acolhedor do que o de João. João, que gostava muito do casal, embora Antenor já lhe viesse dando indícios do declínio, a princípio sofreu quase tanto quanto Selma e, no primeiro segundo que Selma liberta seu ombro, vai à procura de Antenor, tentar, por todos os meios, persuadi-lo a renovar o namoro. Mas foi tudo escrito em vão: Antenor estava firme na sua decisão. A João, só restava ser ombro.
A face melancólica de Selma não queria largar o ombro de João, e o ombro de João, que jamais aconchegara uma face, em vez de mostrar-se exausto, foi-se sentindo suavemente aconchegado... Gradualmente, à medida que Selma via sua dor arrefecer e a amizade por João aumentar, João via sua amizade por Selma transformar-se em carinho, dependência afetiva, depois, e culminar em paixão. E, por um desses milagres da teoria da relatividade (ou da simples ironia da vida), Selma, àquela altura, só não ficara bonita porque ficara linda.
Selma, que tinha sido feia, era muito esperta, e penso que já desconfiava da queda de João, mas, astuta como era, foi dando corda; muita corda. João, que já se apaixonara algumas vezes, nunca havia namorado, e não sabia como fazê-lo, despencou no buraco negro da paixão. Depois de muito hesitar, marca um encontro com Selma, em frente ao Capitólio, no final da tarde. Mal ela surge, ele, de chofre, se declara (como se dizia na época). Ao primeiro pedido de namoro da vida de João, Selma responde com um beijinho rápido. Feliz pelo primeiro beijo de sua vida (embora um beijinho superficial) e atônito, ele pergunta: “Você aceita meu pedido de namoro?” Ao que Selma responde com outro beijinho superficial. João, ainda atônito, insiste: “Isto significa que você aceita meu pedido de namoro?” Selma, vendo o desconcerto de João e lembrando-se que era sábado, sugere que se encontrem depois das 8 da noite, no Refavela, e, sem resposta verbal, se despede com mais um beijinho.
Selma ainda está dobrando a esquina, e João já está saltitando, dando volteios em torno de um poste, dá pequenas carreiras pela calçada, volta ao giro no poste... Se alguém o visse, naqueles movimentos, certamente iria pensar que ele era maluco ou que acabara de assistir a “Dançando na chuva” e, com muito álcool na cabeça, estava dançando no seco, tentando imitar Gene Kelly. Ledo engano. Ele nunca vira este filme. Parece haver determinados gestos que fazem parte do inconsciente coletivo e são levados adiante por gerações que nunca os viram antes. Talvez fosse o caso.
Naquela época, o Refavela era o autêntico bar alternativo de Campina Grande. Abria às oito da noite e encerrava suas atividades, inapelavelmente, às 5 e 10 da manhã, ao final da execução do desagradável “Bolero”, de Ravel. Escuro, ali circulavam os artistas alternativos da cidade, os jovens alternativos da cidade, as mulheres alternativas, os homens alternativos, todas as alternativas. Não havia um tira-gosto ou prato agradável, naquele bar, mas havia outros alimentos que faziam a cabeça e o resto do corpo dos freqüentadores, e, por isto, o bar tinha freguesia certa.
Depois de alguma conversa e certo tempo na penumbra do Refavela, Selma começa a beijar João, agora pra valer, e João, que nunca beijara antes, fica sem saber o que fazer com a boca, os lábios, a língua, a saliva, os dentes, a gengiva... Espantada com a completa inépcia de João, com aquele “molambo da língua paralítica”, Selma fica completamente desconcertada e não consegue mais articular uma frase com sentido. Definitivamente, não falavam a mesma língua. E a agora linda Selma, para quem o tempero do namoro era beijar, sequer cogitou de dar um tempinho a João para aprender a beijar: entrou em pânico, e foi ao banheiro buscar uma dor de cabeça. Na volta, falou, rapidamente, com Thalma, sua amiga, apresentou a João a dor de cabeça, despediu-se do lábio inferior de João com seu lábio superior frio e rápido e, sob a alegação de que precisava de cama, deixou o Refavela, aproveitando a carona, pois Thalma estava de saída, e providencialmente iria na direção da casa de Selma. (Dizem as más línguas que a dor de cabeça de Selma, ao passar pela Maciel Pinheiro, resolveu trocar a cama pelo “dancing” da “Esquina”, a boate que era o refúgio das desquitadas, o paraíso dos jovens universitários, o vestíbulo dos motéis.)
João foi caminhando sozinho do final do Catolé até o final da Prata, onde morava, tentando encolher a noite. Por mais que tentasse entender o que estava acontecendo, não conseguia. A alegria serpentina se desmanchara em segundos; aquela mudança brusca de humor, a dor de cabeça que veio do banheiro, a pressa em ir embora, a carona coincidente, tudo isto punha a noite desconcertada e triste – ainda mais que era a sua primeira noite de namoro. Mas amanhã, Selma ligaria pra casa de Ariosvaldo, onde João costumava jogar buraco nas tardes de domingo, e tudo se esclareceria. Agora, era arranjar um jeito de encontrar o sono, que se escondia com destreza de refugiado.
A tarde demorou a chegar. Perdendo ou sujando canastras e cedendo muitos bagaços, João só tinha sentidos para o telefone – que não tocava, e quando o fazia, não trazia Selma. A cada mão, João ia perdendo o jogo e a esperança. Anoiteceu em vão. João não sabia o que fazer. Como não havia telefone na casa de seus pais, saiu dali para a Faculdade de Ciências Contábeis, onde havia um orelhão. Telma atendeu e disse que Selma não estava em casa. Não fora domingo, o orelhão teria recorrido às Ciências Contábeis para enumerar a quantidade de vezes em que teve de chamar Selma.
Só na segunda à tarde, o orelhão conseguiu trazer a voz fria de Selma, que não podia conversar naquele instante, à noite desceria da Química, encontraria João nas Letras, às 9 horas, e lá conversariam. Certamente, Selma, que sabia dar tanta corda aos homens, não sabia dar um pouco de corda ao seu relógio, pois os minutos e as horas se arrastavam como séculos, e somente perto das 12 horas, quando percebeu que sua presença atrapalhava o sono do vigia, João, embora não pudesse entender o bolo que Selma lhe ofertava, entendeu que Selma não viria mais.
Na terça, João só não acordou cedo porque não havia dormido. Como o seu imaginário sobrevoava mais as indefinições de Kafka e Becket do que a razão de Zola ou Eça, ele buscava, em vão, explicações vagas e absurdas para o naturalismo chão de Selma. Compreendendo que maltratava o indefeso orelhão em vão, João vai ao curso de Química no horário da aula de Selma. Agora que o ombro era inútil, a Selma a única coisa que importava era uma boca habilidosa, e sem coragem para dizer a verdade e muita frieza, ela diz que precisa de um tempo. Que tempo, se nem havia começado? Quanto tempo? Estabelecesse. João aguardaria o tempo necessário, fosse qual fosse: ele queria somente que ela precisasse o tempo: uma semana, um mês, um ano... Neste ponto, a ingenuidade (ou imbecilidade) de João deu coragem a Selma para ser parcialmente sincera e parcialmente covarde:
— João: você é um homem ou um bebê? Será que você não entende que essas coisas não se resolvem com calendário? Procure entender isto, procure esquecer o que está acontecendo, e o tempo lhe dará a resposta que procura.
Porque todo o sentido do mundo desaparecia naquele momento, João, que nem cacos de vaidade tinha para colar, teve de sair catando pedaços de nada no ar para retocar o que sobrara de seu retrato interior.
João, que não sabia beijar e não sabia que não sabia beijar, prosseguia sem entender o que houve, sem esquecer Selma, e seguiria anos a fio “abraçado ao seu rancor” e arrastando o exílio das bocas, não fora o aparecimento de Gorete em sua vida. Por indicação de amigos, João foi tentar se esquecer do enigmático namoro de algumas horas nos braços de Gorete. João só iria saber que não sabia beijar, quando a honesta Gorete, de quem virara freguês, após tentar beijá-lo algumas vezes, revelou: “Você não sabe beijar” – e propôs ensinar-lhe os vários tipos de beijo: de principiante, habilidoso, de trivela, lambedor, treme-treme, sorvedouro, ondulante, areia-movediça e o mais importante: o entrega-tudo (apelidado de “falência da razão pura”), que, segundo Gorete, se aplicado depois dos outros, nocauteava a feminista mais empedernida. Mas só ensinaria um tipo a cada visita; se ele quisesse aprender todos de uma vez, faria um abatimento, mas teria de pagar o curso inteiro de uma só vez. João ficou multiplamente surpreso: não sabia que não sabia beijar; nunca imaginou que houvesse tantas maneiras de beijar; não sabia que os beijos tinham registro léxico e, embora conhecesse o habilíssimo uso da língua de Gorete, jamais a imaginara capaz de tal desenvoltura verbal.
E embora João achasse todos os comerciantes mentirosos, fora o comércio sincero de Gorete que lhe proporcionara aquela epifania, levando-o a compreender, finalmente, que não havia mistério algum no comportamento indecifrável de Selma: tudo estava ao rés do corpo. A única saída era banir Selma da alma e fazer o curso completo com Gorete. Mas o que João ainda não podia saber era se, depois de entender o motivo do fracasso com Selma e fazer o curso completo com Gorete, ele conseguiria perdoar Selma e, principalmente, beijar naturalmente.