Augusto dos Anjos não se vincula a nenhuma estética literária, nem mesmo à modernista. Embora seja um poeta moderno e sempre atual, ele não pode ser modernista, pois esse movimento literário só foi criado 8 anos após a sua morte.
O ser moderno não tem relação alguma com o movimento artístico-cultural da época que o escritor viveu ou vive. Darei dois exemplos disso. Gregório de Matos, o único expoente do nosso Barroco literário, era e continua sendo um poeta moderno, por ter sentido e expressado, através de sua poesia crítico-satírica, as contradições da época em que viveu. Marcial, poeta latino do século I depois de Cristo, mostrou-nos, com uma certa crueza, como funcionava Roma, a cidade que ele amava, cheia de conflitos, de pessoas ignorantes querendo se passar por pessoas inteligentes, de bajuladores, de pervertidos, da situação humilhante entre o patrocinador e seus clientes. Antes mesmo de qualquer outro escritor, em qualquer época, Marcial tinha a consciência de que o livro era mercadoria e de que o escritor precisava ser pago pelo trabalho que dava ao público. Além de dar endereços de livreiros e de denunciar o plágio a seus escritos, o poeta que transformou o epigrama em gênero literário, transmitiu-nos a seguinte lição: o escritor faz livro para vender, não para dar de presente. Embora a lição ainda não tenha sido aprendida por muitas pessoas, Marcial desponta, desde já, como um escritor com a clareza da importância de sua profissão. Moderno, portanto.
Voltando a Augusto dos Anjos, o poeta mostra-se claramente sintonizado com o seu tempo, buscando, em seus poemas, a angústia do humano. Numa época em que as ciências biológicas e, especialmente, a teoria darwiniana da evolução da espécie, tinham preponderância nos meios intelectuais, a sua obra procurou compreender o ser humano circunscrito a essa evolução. Mas isso não lhe bastou. Não lhe bastou utilizar, com propriedade e com consciência, um vocabulário científico – jamais cientificista! –; não lhe bastou refletir sobre esse ser biológico, sobre a sua constituição e fisiologia; não lhe bastou ver que evoluímos do inorgânico para o orgânico, enquanto as montanhas, as algas, os peixes, os cães, continuam estacionados. O que nos fez chegar a esta condição humana, quando nossos ancestrais continuam como formas minerais, larvares, marinhas ou terrestres, urrando nos bosques, mesmo sendo nossos irmãos mais velhos?
Correndo paralelamente à teoria da evolução, Augusto dos Anjos revela um processo de reflexão sobre uma outra evolução que não acompanhou a biológica: a evolução espiritual. Somos ínfimos, espiritualmente, ainda não nos desvencilhamos de um “amniota subterrâneo” e, diante de “embriões de mundos que não progrediram”, como o cachorro, a nossa “alma embrionária” não continuou e vivemos a “ganir incompreendidos verbos” (“As Cismas do Destino”). Descendemos de “macacos catarríneos” (“Os Doentes”), mas não fomos adiante, porque estacionados na materialidade que nos emperra, como a do “Filósofo moderno” e a do “Sátiro peralta”, ambos desmembramentos do homem que a “Sombra” um dia foi (“Monólogo de uma Sombra”).
Aliando, portanto, uma linguagem inusitada, com um vocabulário não menos, contemplando as várias ciências e a espiritualidade, Augusto se faz um poeta singular e inigualável. Nunca houve antes, no Brasil que assim escrevesse, sem parecer artificial e pedante. Ainda não conheço, na atualidade, quem possa emular o poeta. Augusto compreendeu, já na sua época, conceitos que só hoje são correntes na biologia evolutiva. E fez mais, ele os poetizou. Os conceitos não perderam a sua precisão científica, nem o poeta deixou de os recriar poeticamente. Se somos peixes pulmonados ou se o carbono é o andaime da vida, como afirmou o biólogo darwinista Richard Dawkins, Augusto dos Anjos não só confirma isso, conforme nos diz o seu angustiado eu-lírico, que aparece como “filho do carbono e do amoníaco” (“Psicologia de um Vencido”), mas também ele vai muito adiante, em “Alucinações à Beira-Mar”, mostrando que esse peixe pulmonado que somos é também cerebrizado, embora não tendo evoluído espiritualmente e continue equiparado às algas e aos peixes, essa “equórea coorte”, com que se depara o eu-lírico, em mais uma de suas alucinações e visões, provocadas por desdobramentos psíquicos.
Por esses exemplos já dá para perceber o porquê de Augusto dos Anjos ser um poeta moderno, não modernista, estando para além de qualquer estética literária. É verdade que ele apresenta em sua poesia um cuidado com a forma, utilizando-se, o mais das vezes, de sonetos e do verso decassílabo. Mas a tradição, em sua poesia, é para ser renovada, não para ser repetida. Muito antes do postulado por Mário de Andrade, em seu polêmico “Prefácio Interessantíssimo” para Pauliceia Desvairada (1922), Augusto tinha a nítida clareza de que o passado é lição para se refletir, não para se repetir.
A discussão sobre a vinculação ou permanências de alguma estética na poesia de Augusto parece-me, hoje, um tanto sem sentido, tendo em vista a grande transformação que o poeta do Pau d’Arco impôs à poesia brasileira. Para ser mais claro e, digamos, um tanto ofídico, diria que essa discussão representa muito bem o que eu chamo de “Síndrome da Inércia”: alguém com certa autoridade no assunto levanta uma discussão sem sentido e os demais correm atrás, sem fazer qualquer reflexão sobre o assunto. Assim acontece também com os que afirmam a linguagem de Augusto dos Anjos ser cientificista…
Tomemos como exemplo – embora haja muitos, mas não queremos nos alongar – a segunda estrofe do poema “Barcarola”, para explicar a sua revolução formal, para além do decassílabo com duas palavras, como em “profundissimamente hipocondríaco” (“Psicologia de um Vencido”):
Espelham-se os esplendores Do céu, em reflexos, nas Águas, fingindo cristais Das mais deslumbrantes cores.
Trata-se de uma estrofe prosaica, quebrada, descontinuada em enjambements, apesar da rima abba e do metro heptassílabo. Ao leitor desavisado, poderia parecer que o poeta produziu uma estrofe dentro da mais conservadora tradição. Puro engano, a descontinuidade sintática do verso, que obriga o enjambement é o mínimo de ruptura aceitável com a tradição. O que nos chama a atenção para a negação da tradição, a despeito da rima e da métrica, é exatamente a utilização pouco ortodoxa desses dois recursos. Observe-se que a rima dos versos internos é feita entre “nas” e “cristais”. É de arrepiar qualquer parnasiano. Augusto dos Anjos usa uma preposição contraída a um artigo para rimar com um substantivo. Ele aprofunda a discordância com o parnasianismo. A lei da métrica portuguesa estabelece que a contagem das sílabas poéticas de um verso pare na sílaba tônica da última palavra do verso, como ocorre em “esplendores” e “cores”, palavras paroxítonas, ou em “cristais”, palavra oxítona. Não basta ao poeta fazer uma rima entre uma preposição e um substantivo, ele transforma a preposição contraída, de átona para tônica, ainda que não a acentue graficamente, e a ditonga em “nais”, para que possa rimar com “cristais”. Este é um dos inúmeros exemplos existentes na poesia de Augusto dos Anjos, que torna inócuo, a quem conhece a sua poética, qualquer discussão estagnada sobre vinculações a estéticas literárias. O Eu é para ser lido como um único poema, dialogando entre si, na temática e na desconstrução da tradição formal.
Há, enfim, quem passe indiferente diante da estrofe 14 de “Monólogo de uma Sombra”, atendo-se à forma da sextilha decassilábica, sem enxergar os recursos estilísticos e criativos da rima de “apodrece” com a letra “s”, em que a plasticidade dinâmica do verso recria o movimento sinuoso, mais de que perceptível, do festim dos vermes, num corpo em decomposição. Quem assim procede desconhece que o artista, de um modo geral, é uma esponja. Ele absorve tudo o que a tradição lhe trouxe, mas filtra os vinhos, como diria o poeta latino Horácio, e só degusta o que ele pode transformar em criação, não em repetição. Augusto nos dá bons exemplos disso.