Augusto dos Anjos não se vincula a nenhuma estética literária, nem mesmo à modernista. Embora seja um poeta moderno e sempre atual, ele não pode ser modernista, pois esse movimento literário só foi criado 8 anos após a sua morte.
Voltando a Augusto dos Anjos, o poeta mostra-se claramente sintonizado com o seu tempo, buscando, em seus poemas, a angústia do humano. Numa época em que as ciências biológicas e, especialmente, a teoria darwiniana da evolução da espécie, tinham preponderância nos meios intelectuais, a sua obra procurou compreender o ser humano circunscrito a essa evolução. Mas isso não lhe bastou. Não lhe bastou utilizar, com propriedade e com consciência, um vocabulário científico – jamais cientificista! –; não lhe bastou refletir sobre esse ser biológico, sobre a sua constituição e fisiologia; não lhe bastou ver que evoluímos do inorgânico para o orgânico, enquanto as montanhas, as algas, os peixes, os cães, continuam estacionados. O que nos fez chegar a esta condição humana, quando nossos ancestrais continuam como formas minerais, larvares, marinhas ou terrestres, urrando nos bosques, mesmo sendo nossos irmãos mais velhos?
Aliando, portanto, uma linguagem inusitada, com um vocabulário não menos, contemplando as várias ciências e a espiritualidade, Augusto se faz um poeta singular e inigualável. Nunca houve antes, no Brasil que assim escrevesse, sem parecer artificial e pedante. Ainda não conheço, na atualidade, quem possa emular o poeta. Augusto compreendeu, já na sua época, conceitos que só hoje são correntes na biologia evolutiva. E fez mais, ele os poetizou. Os conceitos não perderam a sua precisão científica, nem o poeta deixou de os recriar poeticamente. Se somos peixes pulmonados ou se o carbono é o andaime da vida, como afirmou o biólogo darwinista Richard Dawkins, Augusto dos Anjos não só confirma isso, conforme nos diz o seu angustiado eu-lírico, que aparece como “filho do carbono e do amoníaco” (“Psicologia de um Vencido”), mas também ele vai muito adiante, em “Alucinações à Beira-Mar”, mostrando que esse peixe pulmonado que somos é também cerebrizado, embora não tendo evoluído espiritualmente e continue equiparado às algas e aos peixes, essa “equórea coorte”, com que se depara o eu-lírico, em mais uma de suas alucinações e visões, provocadas por desdobramentos psíquicos.
A discussão sobre a vinculação ou permanências de alguma estética na poesia de Augusto parece-me, hoje, um tanto sem sentido, tendo em vista a grande transformação que o poeta do Pau d’Arco impôs à poesia brasileira. Para ser mais claro e, digamos, um tanto ofídico, diria que essa discussão representa muito bem o que eu chamo de “Síndrome da Inércia”: alguém com certa autoridade no assunto levanta uma discussão sem sentido e os demais correm atrás, sem fazer qualquer reflexão sobre o assunto. Assim acontece também com os que afirmam a linguagem de Augusto dos Anjos ser cientificista…
Tomemos como exemplo – embora haja muitos, mas não queremos nos alongar – a segunda estrofe do poema “Barcarola”, para explicar a sua revolução formal, para além do decassílabo com duas palavras, como em “profundissimamente hipocondríaco” (“Psicologia de um Vencido”):
Espelham-se os esplendores Do céu, em reflexos, nas Águas, fingindo cristais Das mais deslumbrantes cores.
Trata-se de uma estrofe prosaica, quebrada, descontinuada em enjambements, apesar da rima abba e do metro heptassílabo. Ao leitor desavisado, poderia parecer que o poeta produziu uma estrofe dentro da mais conservadora tradição.
Há, enfim, quem passe indiferente diante da estrofe 14 de “Monólogo de uma Sombra”, atendo-se à forma da sextilha decassilábica, sem enxergar os recursos estilísticos e criativos da rima de “apodrece” com a letra “s”, em que a plasticidade dinâmica do verso recria o movimento sinuoso, mais de que perceptível, do festim dos vermes, num corpo em decomposição. Quem assim procede desconhece que o artista, de um modo geral, é uma esponja. Ele absorve tudo o que a tradição lhe trouxe, mas filtra os vinhos, como diria o poeta latino Horácio, e só degusta o que ele pode transformar em criação, não em repetição. Augusto nos dá bons exemplos disso.