Deus não privilegia pessoas, por isso determinou que o dom do Espírito Santo se derramasse também sobre os gentios e, em consequência, Pedro os batizou. Assim, está no Atos dos Apóstolos (Cap. 10, vers 34, 45 e 47)
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Sabemos que, diferentemente do Velho Testamento, escrito para a comunidade hebraica e na língua que lhe era própria, o Evangelho foi escrito em grego, segunda língua da bacia do Mediterrâneo, para que atingisse todas as nações. Na época de sua escritura, entre os anos 60 e 70 depois de Cristo, o mundo mais importante estava construído em torno do Mediterrâneo ou Mare Nostrum, como diziam os romanos. Contudo, mais do que o latim, que se propagara para o norte e para o ocidente, o grego era a koiné, a língua comum nesse vasto domínio (estima-se que o texto de Mateus foi escrito entre 64-70, em Antioquia; o de Marcos por volta do ano 60 e dirigido à Igreja em Roma, sendo o mesmo presumido ano do de Lucas; já o Evangelho de João foi escrito, aproximadamente, no ano 70).
A grande lição que o Evangelho do Cristo propaga é sobre o Amor: Amar a Deus e ao próximo são os mandamentos. Não há necessidade de qualquer teoria, de qualquer explicação ou de qualquer exegese mirabolante para se entender isto. Amar a Deus e a seu próximo, nenhum sistema, muitas obras, sendo o amor a vereda que abrevia o Evangelho, o Cristianismo direto, como dizia o monsenhor Myriel Bienvenu, personagem de Os Miseráveis (Livro I, Capítulo XIV). A hermenêutica, portanto, não se aplica ao caso, pois a lição não é hermética. Doutrinadores, por razões óbvias, é que fazem um tour de force para parecer que o entendimento da lição do Amor é difícil. Eis um dos motivos por que, durante muito tempo, a Bíblia era leitura proibida para os que não pertenciam ao corpo eclesiástico. Se há dificuldade, ela reside não no entendimento da lição do Evangelho – palavra que, apropriadamente, em grego significa “a boa mensagem” –, mas na sua práxis, por isto mesmo o que se traduz comumente como Atos dos Apóstolos deveria ser chamado, como é em grego, de práxis ou de exercícios ou de ações dos apóstolos, pois a divulgação da boa mensagem deve ser um fazer diuturno e contínuo. Ato é fato acabado; ação é fato em continuidade.
E por que essa práxis é difícil? Porque devemos fazê-la sem cessar e isto requer trabalho, bastante trabalho. Não há Amor, nem entendimento do que seja o Amor sem trabalho. O Evangelho nos diz isto de muitas maneiras, uma delas é através da “Parábola do Semeador”, que se encontra em Lucas, 8, 5-8. Esta alegoria inicia com uma ação: “Saiu o que semeia a semear a sua semente” (ξῆλθεν ὁ σπείρων τοῦ σπεῖραι τὸν σπόρον αὐτοῦ). Veja-se que, contrariamente à tradição, o texto grego diz “aquele que semeia”, o que é bem diferente de “o semeador”. Do mesmo modo que ação é diferente de ato. O que semeia está diretamente na ação, enquanto a condição do semeador não o mostra, necessariamente, em atividade. Na parábola, a atividade é clara. Há uma ação em curso de alguém que semeia a sua semente.
O Padre Antônio Vieira, grande orador parenético, já chamava a atenção para essa sutil diferença no seu magnífico “Sermão da Sexagésima”. Não é apóstolo o que não se afasta para ser enviado a um trabalho (tradução literal do termo, em grego). Não é apóstolo o que não sai para pregar, assim como não é o que semeia o que não sai para semear. A semeadura exige um trabalho incessante de escolha e de preparo da terra, de seleção da semente, da época em que se pode semear e dos cuidados para a sua germinação e frutificação. Do mesmo modo, o apostolado é um trabalho contínuo, para fazer frutificar cem por um a palavra de Deus, que é a semente, em sua propagação pelo mundo conhecido de então, tendo como suporte a língua grega.
Cristo falava para pessoas simples – agricultores, pastores, pescadores –, que entendiam o que ele dizia, pois falava daquilo que era sua prática diária: o trabalho para a produção de alimento. Apenas ele usava uma forma alegórica, que transformava o alimento essencial à vida material, em alimento espiritual. A semente vai germinar e gerar o fruto necessário à manutenção da vida. O que semeia é o responsável por isso com o seu dedicado trabalho. O apóstolo ou o que propaga a fé cristã, afastando-se de sua comodidade para enfrentar o trabalho, torna-se o responsável pelo alimento espiritual, imprescindível à nossa evolução.
Em uma passagem do Evangelho Segundo o Espiritismo, lemos o seguinte:
“Ide, pois, e levai a palavra divina: aos grandes que a desprezarão, aos eruditos que exigirão provas, aos pequenos e simples que a aceitarão; porque, principalmente entre os mártires do trabalho, desta provação terrena, encontrareis fervor e fé”. (“Missão dos Espíritas”, p. 265, Capítulo XX).
Os grandes, evidentemente, na época de Cristo eram Herodes, Caifás e todos os que faziam a cúpula do judaísmo; os eruditos, eram os fariseus, doutores da lei; os pequenos e simples eram os trabalhadores e os pobres, que acompanhavam Jesus e o escutavam, reduzidos depois, como diz João (6, 66), a doze, destinados a fazer o trabalho da propagação da fé. Com a compreensão que temos hoje, somos muitos os que podemos propagar o Amor.
Ao fim e ao cabo, sabemos que é o trabalho, a dedicação, a fé, que nos conduzem ao caminho do Amor. Procurar ou aceitar o caminho mais curto é ceder à tentação do mais fácil, por ser mais sedutor. Há, no entanto, um alto preço que se paga por essa escolha. Cristo nos dá o exemplo, diante da tentação de Satanás, no deserto, mostrando que o caminho a ser trilhado deverá ser sempre o do trabalho, o da fé em Deus, não importa a dificuldade a se enfrentar, pois só vencendo as dificuldades é que as nossas conquistas têm valor. O que vem fácil vai fácil, como o diz muito bem a sabedoria dos mais velhos. O caminho laborioso do Cristo e a sua firme proposição em adorar apenas a Deus, seu pai, foi o que o fez conquistar o mundo, não a solução fácil e sedutora de Satanás (Mateus, 4, 8-10).
A vida é semeadura.