Difícil imaginar um pai perder sua única filha, vítima de doença súbita com apenas 5 anos de idade, logo após ser sentenciado com endocardite incurável e, mesmo diante de tamanha fatalidade, escrever o seguinte:
“Passei por tantas experiências neste último ano e meio... Não sei como descrever uma crise tão colossal. No entanto, estou com mais sede de vida e sinto o 'hábito de viver' doce como nunca”.
Assim confessou Gustav Mahler em carta ao amigo, maestro Bruno Walter. Ainda que diante os arroubos de esperança, ao final ele revele estado de espírito menos otimista:
“Para encontrar o caminho de volta a mim mesmo, tenho que aceitar os horrores. Não se trata de medo hipocondríaco da morte, pois sei que agora ela está a caminho. Perdi a calma e a paz de espírito que já havia alcançado, e no final da vida tenho que aprender novamente a me erguer e caminhar”.
Apesar da dureza enfrentada, Mahler parecia superar tudo com força admirável dedicando-se afincadamente à obra que se coloca entre as expressões máximas do romantismo tardio austro-alemão. Em todo seu trabalho, a transcendência se sublima esteticamente nas frequentes e pontuais referências à morte. Mesmo quando se disse desconectado do mundo, de sua gente, de convicções religiosas, “desajustado até com o universo”, extrapolou a emoção vencendo o que se lhe apresentava nefasto com a ressureição da fé em algo maior.
Registros críticos e análises históricas apontam para evidências de que ao ler os poemas clássicos contidos na compilação “A flauta chinesa”, com 83 poemas escritos nos séculos VIII e IX, traduzidos pelo alemão Hans Bethge, a partir da versão francesa do Marquês D’Hervey de Saint-Denys, Gustav Mahler sentiu ecoar intimamente o ponto de encontro conceitual sobre mortalidade e imortalidade.
Nos poemas destes autores chineses românticos, Li Bai (Sui Ye, ano 701), Qian Qi (Wu, 710), Li-Tai-Po (Suiabe, 701), Mong-Kao-Yen (Hubei, 689) e Wang-Wei (Qxian, 699), este último conhecido como o “Poeta do Buda”, a presença da percepção “zen” da natureza, do sentimento de amizade, de solidão, da efemeridade do tempo, de viagens por paisagens imaginárias com concepção taoista inspiraram Mahler a compor a magnífica “Canção da Terra” (Das Lied von der Erde), obra que ele nunca viu executada, tendo apresentado-a, poucas vezes, em versão transcrita para piano.
Alegam certos estudiosos que poucos compositores se despediram da vida terrena com mais frequência e eloquência do que Mahler. O tema da morte permeia suas peças sob várias formas, conectadas como num rosário. Desde a Sinfonia nº 1, em que o trágico ganha conotação irônica, às inclementes “Canções de um Wayfarer”, passando pela “Ressureição”, sua 2ª Sinfonia, pelos movimentos sombrios da 4ª, 5ª, 6ª (Trágica), 8ª (Grande Oratório), até as três últimas obras: A "Canção da Terra", a 9ª e a 10ª sinfonia (inacabada).
Na “ode” à Terra, peça que assume integralmente o caráter de lied (canção) sinfônico, Mahler imprime particular e solene reverência ao planeta, não apenas se lhe referindo como “mãe”, mas como abrigo acolhedor de todas as dores, prazeres e incertezas. Nesta abordagem a escolha dos poemas taoistas chineses tem afinada sintonia com a expressão de seus sentimentos existenciais.
A densidade textural em que se desenvolve a obra, dividida em seis partes de canto e orquestra, com características temáticas próprias, sem perder a unidade da estrutura filosófica, é de uma riqueza musical primorosa. Mahler funde o ciclo de canções e as sinfonias sintetizando ideais de composição em um espectro virtuosamente abundante que desvela traços de toda sua vida e obra pregressas. Além de ostentar a profícua habilidade de compor em vários modos, do operístico ao coral, do sinfônico ao lírico, da delicadeza harmônica à dissonância tonal, fazendo referências à cronologia criativa que pontuou sua personalidade artística. Não é à toa que ele próprio considerava a "Canção da Terra" como a mais pessoal de suas músicas.
Entre a monumentalidade da “Sinfonia dos Mil”, sugerindo ideia de ser executada por 1.000 intérpretes, e a profundidade contemplativa do adagietto da Quinta Sinfonia, na qual Luchino Visconti encontrou a atmosfera perfeita para filmar o misterioso "Morte em Veneza", escrito por Thomas Mann, A "Canção da Terra" se insere como síntese de uma vida. Nela desfila integralmente o caráter pessoal e espiritual de Mahler.
O primeiro movimento, “Das Trinklied von Jammer der Erde” (Canção de beber da tristeza da terra”), é um alegretto que revela a afinidade do compositor com os efeitos extasiantes da bebida, explícita nos versos de Li Bai, que elegem o vinho como “o melhor remédio para os males humanos”. Perante do absurdo da vida, a embriaguez é referida como única saída para a dor e a revolta”. Entretanto, para esquecer de que o vinho não anula o lado obscuro da existência, Mahler conclui cada estrofe com o refrão “Sombria é a vida, é a morte” (Dunkel ist das Leben, ist der Tod). E se utiliza de recursos orquestrais para alternar as emoções, retornando à euforia.
“Ainda estou sóbrio; que a festa prossiga! Bêbados, cada um pelo seu caminho!”
Segue-se o pesaroso andamento “O solitário no outono” (Der Einsame in Herbst), baseado na poesia de Tchang-Tsi, um lamento perante as causas que podem provocar a degradação humana em nossa existência . Protagonizado pela contralto, o “solitário” canta a desoladora tristeza ansiando para que o outono “não se demore tanto em seu coração”.
Contrastando com a nostálgica declamação anterior, surge a 3ª “canção”, entoada com outros ares e temperamento bem-humorado, sobre o poema “Da juventude" (Von der Jugend). Há algo de oriental no ritmo e nas delicadas melodias harmonizadas com o texto, ilustrado com imagens de um “pavilhão de porcelana verde”, uma “pequena ponte de jade”, a se refletirem na superfície de um lago. E tudo converge para o clima de fanfarra a se concluir com a alegria da juventude, entremeado com o imaginário lírico sempre presente, além de menções temáticas à primeira sinfonia.
Mantendo o clima gracioso e descontraído, sucede-se o quarto movimento, com o poema “Von der Schönheit” (Da beleza), parafraseando um cenário com moças colhendo flores de lótus à margem de um rio, na presença das duas vozes.
O bucolismo persiste até ser quebrado pelos arroubos marciais que acusam a chegada de jovens cavaleiros montados em “corcéis de fogo”, conturbando e roubando a atenção, dando sequência ao penúltimo andamento “O bêbado na primavera” (Der Trunkene im Frühling). Este lied, um hino aos prazeres da bebida, narra sobre um jovem embriagado, de espírito alegre e folgado, que desperta com o canto de um pássaro anunciando, ainda à noite, que é chegada a primavera. Entorpecido, ele debocha, mostra-se indiferente e diz que nada tem a ver com a ave nem com primavera: “Se não posso mais cantar, que me importa a primavera? Deixai-me com a minha embriaguez!” E assim prossegue, jocoso e animado até o final.
Eis que chega a última parte, talvez uma das coisas mais bonitas e profundas que Mahler escreveu. A textura sonora que se inaugura nos primeiros instantes, ornamentada com arabescos orientais sobre um pedal grave, criam distinto e misterioso universo protagonizado pelo dueto de flauta e voz que se estabelece acima de tudo, solenemente compassado por trompas e sopros trinados.
As ardentes e suplicantes melodias que a contralto entoa nas principais aparições do tema exprimem a dor de forma tão intensamente lírico-dramática que se pode considerar uma das raras possibilidades alcançadas por um compositor de fundir e confundir tristeza com beleza .
Neste movimento, que representa quase metade da Canção da Terra, em 30 extasiantes minutos, se inclui o poema “O Adeus” (Der Abschied), dos autores Mong–Koo–Yen e Wang–Wei, com cenas de despedida que delineam crepúsculos nas montanhas, o anoitecer e “suas sombras frescas por trás dos vales”, narrados em comoventes paisagens melódicas, como na que a solista descreve a Lua “como um barco de prata sobre o mar azul do céu”.
A presença pujante do clarinete, oboé, harpas e do pícolo que surge e ressurge ornamentando o cenário com graciosos arabescos, dão colorido especial à densa circunspecção e mantêm sutilmente os traços orientais dos poemas abordados.
Há durante toda esta parte um ritmo ondulado recorrente, que se reforça para enfatizar a formosa imagem sugerida pelo poema sobre o “canto do regato e a respiração da terra”, quando “todo o desejo se transforma em sonho” […] “Ó beleza! Ó mundo ébrio de amor e vida eternos!”. Trata-se da contemplação da Terra sob grandiosa e “candente irrupção do êxtase”
A conclusão não poderia ser mais bem arrematada. Uma esplêndida e insólita coda com versos do próprio Mahler.
“Meu amigo, a felicidade não me foi propícia neste mundo. Mas meu coração está quieto e aguarda sua hora. Em toda a parte a amada Terra Refloresce na primavera e torna a verdejar! Por toda a parte, e eternamente, resplandece um azul luminoso! Eternamente... eternamente...”
A busca pela perfeição musical em Mahler foi obsessiva. Vítima de dolorosas vicissitudes, foge da desilusão e mergulha no profundo significado da Natureza no qual se reconforta. Em redentor desabafo, chegou a dizer que ao pressentir que Deus não o abençoara, percebeu que as terríveis provações impostas pelo destino o tornariam capaz de criar a música através da qual receberia finalmente a Sua bênção. Por isso, há quem considere que o compositor aprendeu a encontrar o sentido da vida justamente no enfrentamento da morte, uma ideia nitidamente presente em sua arte.
É na "Canção da Terra", que ele consegue fundir magistralmente o canto lírico, a poesia, a música, com espantosa maestria, principalmente ao final, quando assume o poema como autor e se despede dos gozos terrenos em silencioso e resignado êxtase.
Magnífico é o efeito que emerge da Música quando ela consegue se unir à literatura, à poesia, ao canto e ao drama em perfeita simbiose de belezas. A veemente loquacidade com que a "Canção da Terra” se pronuncia e a estupenda capacidade de Mahler para amalgamar vozes humanas (tenor e contralto) na tessitura sinfônica em perfeito equilíbrio, são formidáveis. Uma sinfonia com alma de concerto para orquestra, construída não em diálogos alternados e disputados pelos solistas, mas como partes que convergem estruturalmente para aclamadora união de multiplicidade linguística em um só conjunto temático. É quando o autor canta a existência. É quando a Terra canta sua própria canção.