Donald Sassoon, em “Mona Lisa” (Record, 2004), conta que Montaigne e Rabelais foram à Itália e escreveram deslumbrados sobre a Roma dos Césares, ao tempo em que demonstraram não ter dado a menor atenção às obras de Michelangelo e seus contemporâneos, simplesmente porque apenas trezentos anos depois – e isso assusta - é que se passaria a “ver” o que nos parece hoje o gigantesco Renascimento Italiano.
E o caso da “sorridente” (em italiano: gioconda) “senhora” (mona) Lisa é exemplar. Segundo Sasson, em 1900 ela era conhecida só por uma elite. Vivia-se, porém, um momento novo: se em 1880 um milhão de pessoas liam os 37 jornais parisienses todo dia, em 1914 seus 4 periódicos principais, sozinhos, chegavam aos 4 milhões e meio de leitores. Então se deu que o italiano Vicenzo Peruggia — trabalhando na segurança do Louvre — tirou a tela de Leonardo da moldura e se mandou com ela debaixo do casaco. O Petit Parisien deu manchete de página inteira: “La Joconde a disparu du Musée du Louvre”. Impacto, diretor demitido, guardas punidos, “caso tratado segundo as regras não escritas do jornalismo (onde ninguém sofre por danos triviais)”, noticiou-se: “jamais houve uma pintura mais próxima da perfeição”; foi surrupiado “um retrato único, de uma mulher misteriosa, pintado por um gênio”. Louvre reaberto uma semana depois, a multidão foi em peso ver o espaço vazio e os ganchos que sustentavam o quadro na parede. Maior consagração ainda dois anos depois, com Peruggia preso mais a peça fabulosa, em Florença: a Galeria degli Uffizi superlotou para ver “a obra-prima de da Vinci”, que em Roma foi visitada até pelo rei Victor Emanuel III. O Louvre, então, viveu seu momento de glória.
Com 500 mil craquelures (rachaduras), escura e suja, “Mona Lisa” se tornara ícone maior da civilização ocidental porque o povo gosta de notícias como as geradas por Van Gogh ao cortar uma orelha e se matar com um tiro, ou por Frida Kahlo ao ser arrebentada por um desastre, na juventude.
Ver o fato por trás das versões é mais difícil do que se pensa. Por que a pintura de Vermeer só se consagrou depois de comentada por um personagem do "Em Busca do Tempo Perdido", de Proust? Por que Bach só se celebrizou tanto tempo depois de morto, através de Mendelssohn e Shakespeare através de Goethe? Por que – como afirma Hobsbawm em "A Era dos Extremos" — não há mais Picassos e por que "Cem Anos de Solidão" foi o último romance a receber o consenso universal? A França não produz outros Sartres, a Inglaterra não tem outro Bertrand Russell? A Itália não dá mais Fellinis, Antonionis e Pasolinis? O México não tem, mais, muralistas como Orozco, Siqueiros e Diego Rivera, não tem um novo Cantinflas, outro Octávio Paz? E Buenos Aires: parou em Borges, Gardel e Cortázar? Eis a questão.
W. J. Solha é dramaturgo, artista plástico e poeta