Quando a conheci - num instante para toda a vida - não deu para ver melhor seu rosto ou detalhes de suas feições. Ia com pressa, com alguma coisa a buscar, a fazer, sem dar ou sem ter chance ou lembrança de passar outra imagem da vida.
Onde o Paraíba Hotel faz esquina com a 1817, ali eu me encostara, num intervalo para o café de balcão, a aproveitar o vento da tarde que cumulava das águas e palmeiras da Lagoa para vir soprar forte no topo dos nossos aperreios. Era um vento que dava para se notar bem ladeira acima da Padre Meira, empurrando folhas secas, papéis, o cisco e às vezes o chapéu do doutor Rômulo Rangel, que saía de casa sem se advertir de prender o chapéu com as duas mãos.
Iraci passava como quem vinha da Cidade Baixa, mas só dei por ela, que ia à frente, por causa da irmã que a acompanhava. E mais detalhadamente por causa do andar da irmã. Andar de um jeito ou de um passo que eu já tinha visto antes e que certamente me causara agrado. Gracioso, leve, de menina numa moça recém-saindo da adolescência. Era a moça que ia com ela, não de braços cruzados ou de parelha, mas seguindo os passos da mais velha em direção à parada das marinetes.
Subi o olhar, o andar sempre me chamando, e daí o perfil de menina-moça, vestes simples, cabelos que não sonegavam a nuca, aqui e ali um tico rápido de rosto afilado e claro, como as meninas que os cromos da infância elegem para atravessar a ponte sobre um regato sempre azul, rodeado de flores, que se antecipam ao terreiro das casas pintadas para as antigas folhinhas do ano. Essa menina é Edith, minha mulher, comigo há sete meses de namoro e sessenta anos de casados.
Iraci era a irmã daquela tarde remota apenas no tempo. Lutadora sem saber que era lutadora. Zé Rosas, seu marido, viveu com ela o tempo necessário para terem os filhos. Passou disso, foi viver sua vida. E Iraci ficou encarregada de si e dos filhos, sem reclamar, sem escolher trabalho, até aposentar-se como modesta servidora do Hospital Edson Ramalho, onde veio morrer a semana passada.
Pequena servidora tratada como Dona Iraci.
Antes de morrer, na hemodiálise, pediu às filhas que velassem o seu corpo em casa. Casa de bairro enladeirado e pobre, limpa e com o Coração de Jesus na parede mais à mostra, mandando entrar.
Fomos lá, Dona Iraci na sala de quase toda sua vida, as mãos cruzadas destacando-se do ataúde e o rosto sem sinais de vida nem de morte. Um rosto encerrado. Em torno dele uma coroa de flores silvestres, duas velas e o murmúrio esperado e calmo da família sem ferir o silêncio de sua última estância nesta vida. Tudo como tem de ser.
Gonzaga Rodrigues é escritor e membro da APL