Enquanto olhávamos pela janela o interior do pequeno chalé à beira do fiorde, em Bergen (Noruega), e o cenário que de lá se avista, a música de Edvard Grieg de pronto ecoou na paisagem.
Compositores, poetas, artistas plásticos, escritores que engrandecem a História inspiraram-se nos traços de sua terra, de seu povo, mitos, lendas, literatura, virtudes, nacionalismo, rendendo-lhes homenagens transpostas magistralmente do real ou imaginário para a linguagem em que se expressaram.Um pouco afastado do gracioso sobrado onde viveu, ainda existe o pequeno chalé que Grieg usava para escrever música. Um piano de parede, um sofá e uma estante com livros compõem a modesta e aconchegante decoração. Nada mais seria preciso ao enlevo criador, pois a visão que dali se descortina é estonteante. As noites de lua que cintilaram naquelas águas estão nitidamente refletidas no adagio de seu único concerto para piano e orquestra.
Poemas, sinfônicos ou literários, sinfonias, aberturas, óperas, balés, pinturas, epopéias, tragédias, dramas, comédias e tantas outras formas de arte foram admiráveis em narrar, homenagear, glorificar e retratar o assunto com magnífica amplitude e fidelidade. Romances, biografias, cenários paradisíacos, épicos ou dramáticos, sagas, lendas, sátiras, tudo deu origem a bem lapidada criatividade.
“Love in Bath”, de Haendel, “O ouro do Reno”, de Wagner, a “Sinfonia Alpina,” de Richard Strauss, “Prometheu”, de Scriabin, “A Pastoral”, de Beethoven, “As metamorfoses de Ovídio”, de Dittersdorf, a Sinfonia Fantástica de Berlioz, “Peer Gynt”, de Grieg, são exemplos de música incidental, descritiva ou programática, que desenham com excepcional nitidez os sentimentos que as produziram.
A “Sinfonia Kullervo”, de Sibelius, é um conjunto de 5 poemas sinfônicos que faz jus à forma e descreve com autenticidade impressionante a história trágica de um personagem da mitologia finlandesa que inspirou o médico e linguista Elias Lönnrot a compilar o épico poema “Katevala”, em 1835, a partir de canções fínicas antigas – “rúnicas” – impregnadas de feitiço e magia.
Para certos historiadores, a obra reflete o imaginário nacional do país nórdico. São 50 “cantos” com narrações que abrangem a criação do mundo, guerras, tragédia, paixões e heróis com poderes mágicos, até o prenúncio da chegada de um novo deus, supostamente o Cristo.
Nesta obra, Sibelius constrói a trajetória do desafortunado personagem que descobre que a família foi assassinada pela tribo que o acolheu após massacrar seu clã. Ainda criança, ele é vendido como escravo, sofre muito e consegue fugir ao ficar sabendo de que há familiares sobreviventes. Acaba por seduzir uma garota sem saber que é a própria irmã, julgada morta. Quando ela descobre, horroriza-se e comete suicídio afogando-se no rio. Kullervo enlouquece e a vingança ganha força capaz de fazê-lo voltar à tribo que o criou para, com seus poderes, exterminá-la. Sendo a desforra o propósito que o cegou, após satisfazê-lo, morre lançando-se sobre a própria espada.
Os cinco movimentos desta sinfonia relatam fielmente a parte do poema épico “Kalevala”, que se refere particularmente à saga do herói nativo, personagem marcado por vingança e sarcasmo que impressionaram Sibelius. Uma história que, 124 anos depois, inspiraria o escritor britânico J.R.R. Tolkien a criar, segundo os críticos, “o mais sombrio e trágico de todos os seus personagens” (A História de Kullervo, 2016).
Na introdução, delineia-se o caráter da inevitável fatalidade, poder e bravura presentes no drama a ser narrado. O talento de Sibelius para a sinfonia romântica logo se evidencia na tessitura grandiosa e eclética capaz de mesclar orquestração brilhante e filigranas que remontam às canções rúnicas finlandesas.
O segundo movimento refere-se à juventude de Kullervo, vigoroso, livre da infância escravizada, esboçada no sombrio sentimento inicial. A seguir, a sensação de liberdade e novas descobertas se desenvolvem com grande entusiasmo. As marcas do destino, contudo, são inevitáveis, e eclodem veementes na parte central. O destemido espírito das tribos também é caracterizado em ritmos contagiantes.
O terceiro andamento, tido como a espinha dorsal da sinfonia, é dedicado a Kullervo e sua irmã. Começa de forma lírica, com alegria e plenitude pela nova fase da vida dele, coroada pela primeira aparição do vibrante coral masculino – uma ode ao novo espírito livre e vigoroso do escravo liberto. Tudo gira em torno do fatídico romance com a variedade que a narrativa requer: as aventuras amorosas precedentes, o reencontro, o anonimato inocente, em aparições diversificadas e ecléticas. Duetos do casal, entremeados de coral, rompantes orquestrais, esfuziantes temas e alegorias compõem o mais extenso movimento, em que abundam textos do Kalevala.
O fervor dramático explode várias vezes, descrevendo a gravidade dos acontecimentos e do ambiente tribalístico. A consagração do amor pela irmã, os colóquios ardentes, a decepcionada supresa ao tomar conhecimento do inglório parentesco, a desgraça de ambos, o suspense que antecede o suicídio dela jogando-se no rio, o grito de tristeza dele, a revolta, a supremacia do desejo de vingança são temas que emergem nos ápices sinfônicos apaixonados e na delicadeza de canções doídas que precedem a tragédia. Sozinha na floresta, consternada, prestes a se despedir da vida, ouvindo os pássaros, ela faz ecoar o seu lamento.
Um instante de profusa dramaticidade descreve a sua angústia, sucedido pela revolta esbravejante do irmão diante da crueldade do destino. Mas, eis que prepondera sua índole vingativa ao se decidir por manter o plano premeditado.
Sucede-se o quarto, a batalha! Inteiramente emoldurado com o caráter bélico da obstinação ansiada pelo irado protagonista. Aqui Sibelius transcreve musicalmente a essência textual: “Partiu para a guerra, alegrando-se com a batalha”. Ostensivamente feérico, este movimento vai se encorpando lentamente em crescente premonição. Tudo se desenvolve no mesmo clima até o fim da contenda em que, com poderes sobrenaturais, Kullervo consegue exterminar toda a tribo que vitimou sua família no passado. Sua morte é descrita com a força gritante de golpes sonoros a invocar a própria destruição, e bem lembram o diálogo do coro entre ele e a espada:
— “Agradaria a esta lâmina comer carne culpada e beber sangue pecaminoso?
— “Por que não me agradaria comer carne culpada e beber sangue pecaminoso? Já que eu como a carne e bebo o sangue dos inocentes?”
— “Por que não me agradaria comer carne culpada e beber sangue pecaminoso? Já que eu como a carne e bebo o sangue dos inocentes?”
E ele atira-se morrendo pela própria espada, sob os brados do coro com fúria brutal:
— “Assim foi a morte do jovem, o fim do herói, a morte do malfadado”.
O final da sinfonia é concluído com o que se pode chamar de uma apoteótica missa de réquiem, com todas as características pomposas e litúrgicas. O sentimento de consternação e desventura inicial vai crescendo paulatinamente e cede lugar aos traços de um heroísmo tão imponente que o ouvinte já não sabe se é o autor, o herói ou a música que triunfa com tamanha grandiosidade.
A epopéia nórdica inspirou Jean Sibelius desde que a leu, ainda muito jovem, para outras peças, como as que compõem a suíte "Quatro Lendas de Kalevala" (Opus 22), em que se incluem o “Cisne de Tuonela”, “Lemminkäinen e as Ninfas da Ilha”, "Lemminkäinen em Tuonela", "O Retorno de Lemminkäinen". Além de "Tapiola" (Opus 112), seu último poema sinfônico. Para a crítica, entretanto, Kullervo é obra-prima monstruosa que extrapola todos os limites de sua época. Sua imponente brutalidade infunde medo e respeito, mas, na essência, é uma peça romântica. Para o escritor e compositor finlandês, Karl Flodin, “nunca mais Sibelius criaria algo tão descaradamente megalomaníaco”.
Apreciando esta colossal concepção para grande orquestra, coro masculino, barítono e mezzo-soprano, que resume todos os aspectos dramáticos do lendário personagem, é possível avaliar o poder inspirador para elaborar música erudita que se abraça com a fantasia, com o enredo mitológico e as raízes de um povo. Uma força que pode se originar tanto da leitura de epopeia compilada com canções bálticas, de 3 milênios de idade, como da contemplação de uma bucólica paisagem avistada da janela de um chalé no fiorde de Bergen.
Germano Romero é arquiteto
e bacharel em música