Num outro lado dessa mesma sócio-moeda vigente, está a inexistência de mecenas latino-americanos que, se já existiram no passado, nada do que genuinamente fora feito surtiu em efeitos replicáveis e imitados em nossos dias. Não temos mais patronos; foram-se os referenciais, e sequer, no Brasil, poderíamos afirmar que chegamos a ter alguma espécie de Pater Patriae musical em nossos poucos séculos de nação. Numa saudosista menção e, dadas as devidas proporções históricas, seria possível associar as figuras do estadista romano Caio Cílnio Mecenas e de Pedro de Alcântara João Carlos Leopoldo Salvador Bibiano Francisco Xavier de Paula Leocádio Miguel Gabriel Rafael Gonzaga de Bragança e Bourbon, cujo exagerado nome já nem é mais lembrado; menos ainda seus feitos em prol dos artistas.
A defrontar esta realidade, é possível vasculhar sítios eletrônicos, portais de notícias, blogs, e anuários de cultura, ou nas próprias diversas “redes” sociais", para tentar, em meio a dezenas de nomes, encontrar alguém possuidor de uma busca sincera e um elã reconhecível em sua obra. Na composição musical isto se torna mais difícil porque, diferentemente da literatura, a música, assim como no teatro, carece de intérpretes para que do papel brote ideias e sentidos.
Em meio a uma vastidão de duvidosos talentos, um nome sobressalta pelo empenho e altruísmo, um compositor que tem escapado da subserviência acadêmica, um amigo que fiz digitalmente, e que sua música tem sido, pouco a pouco, realizada e conhecida em terras nacionais. Armando Lôbo é inquieto, parece desprendido de preconceitos musicais, transitando por diversos gêneros, e até propõe simbioses de estilos, bem ao sabor da urbanidade atual.
Deleuze e Guattari já afirmaram:
“O conteúdo propriamente musical da música é percorrido [...] sob toda espécie de influências que concernem também aos instrumentos, ele tende cada vez mais a devir molecular, numa espécie de marulho cósmico onde o inaudível se faz ouvir, o imperceptível aparece como tal: não mais o pássaro cantor, mas a molécula sonora”.
Sob essas espécies de influências, o próprio Armando reflete sobre a relação entre ética e arte, e a nomeação de qualquer um como sendo artista, e questiona: “será que um espírito mais desprendido não merece uma primazia na nossa afeição; ou aquele meramente pecuniário merece ser alcunhado por ‘artista’?” Assim, Armando traz à própria consciência o conceito prático de ‘devir’, como ele mesmo busca representar em sua obra. O verbo devir significa vir a ser; tornar-se. Mas, em sentido filosófico, usado por Guattari e Deleuze, este conceito toma as proporções de uma “transformação incessante e permanente pela qual as coisas se constroem e se dissolvem noutras coisas” (Aurélio eletrônico, 1999):
“É que devir não é imitar algo ou alguém, identificar-se com ele. Tampouco é proporcionar relações formais. Nenhuma dessas duas figuras de analogia convém ao devir, nem a imitação de um sujeito, nem a proporcionalidade de uma forma. Devir é, a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche, extrair partículas, entre as quais instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornarmos, e através das quais nos tornamos. É nesse sentido que o devir é o processo do desejo”.
Por esse ardente desejo em que se denota tão empolgante inflexão vocal, ou do brilho no olhar em Armando, é que se verifica sua busca. O efeito in natura é escancarado como tal, referindo-se ao vazio academicista da experimentação per se que, na concepção – ou em Portugal, conceção, pelo ineficaz e fajuto acordo ortográfico que, felizmente, os lusitanos ainda relutam em aderir... – composicional segue uma tendência da dimensão narrativa pós-moderna. A obra homônima é composta com certos apelos abertos aos instrumentistas, para que, em alguns momentos, escolham as alturas com as quais executam alguns, por assim dizer, “gestos” sonoros:
Se em momentos-chave esta peça para quarteto de cordas lembra os últimos de Villa-Lobos de série antológica de quartetos para esta formação, no trecho ritmata é fácil uma alusão à peça homônima, para violão solo, do grande Edino Krieger, composta e lançada em 1974, e editada pela Max Eschig, em Paris. Em ambas as obras, o contratempo, a pulsação recorrente, marcada acentuadamente, e a percussividade nos instrumentos de cordas, são elementos elevados ao status de condução do discurso.
O pensar de Armando encontra lastro na didática de outro compositor, esse suíço que passou metade da vida na Bahia influenciando gerações e impactado pelo expressivo material rítmico e melódico brasileiro. No texto ‘A Formação dos Compositores Contemporâneos e seu Papel na Educação Musical’, Ernst Widmer escreve sobre o devir do incriado, do inaudito, o que, noutras palavras, crê e também fala Armando:
“O compositor é um artista que cria. Sua função primordial na sociedade é esta: criar livremente. O que é criar? [...] Um compositor, portanto, estaria ‘formado’ se estivesse capaz desta proeza: criar o novo, o inaudito, o incriado. Trata-se de um processo latente, por vezes eruptivo de foro íntimo. Algo muito pessoal e intransferível [...] O incriado não se encontra no já trilhado. Trilhos por isso podem apenas servir ao ato criador através de outro ato, o iconoclasta. Não tenho tanta certeza da ‘formação’ do compositor, do artista que muito mais se caracteriza pelo seu ‘inconformismo’ [...] Pessoalmente creio que o compositor não deve ficar de alheio nem ao que se passa nos colégios, nem nos programas de concertos, nem tampouco nos dos meios de comunicação de massa. Como compositor me sinto co-responsável. Não posso fugir nem ao tempo nem à época.”
Numa conversação ligeira, editada e provocada pela União Brasileira de Compositores, estes temas são pincelados por Armando: “eu acho que o artista é um criador de espíritos”. E eis, chegamos aos arquétipos! Ora, quando Guattari e Deleuze, Widmer e o próprio Armando concluem sobre o invisível som, a incriada idéia – permitam-me o insistente acento, e sua força expressiva... –, e a liberdade do devir, acima de tudo, podemos nos reportar à antiga invocação latina no Veni Creator Spiritus. Com suas sete estrofes que, desde Rabano Mauro, no século IX, passa a servir de inspiração para vários compositores, dentre os quais: Martinho Lutero, no seu coral de Pentecostes Komm, Gott Schöpfer, Heiliger Geist, composto em 1524; Hector Berlioz, num moteto para vozes femininas; Gustav Mahler em sua Sinfonia dos Mil; Krzysztof Penderecki, em moteto para coro misto; Paul Hindemith, usando a melodia ao final de seu Concerto para Órgão e Orquestra; e Maurice Duruflé, também em obra para órgão, Prélude, Adagio et Choral varié sur le thème du 'Veni Creator já em 1930.
Alguns dos versos deste antigo hino sustentam o pensamento desses compositores e a fala de Armando, num sentido transversal ao tempo, do qual a própria Arte é inerente:
Veni, creator Spiritus mentes tuorum visita, Emitte Spiritum tuum, et creabuntur: Et renovabis faciem terrae.
Quando o creator Spititus, invocado, desce à mente artística, surge a criação para além da manipulação meramente experimental e contemporânea do artista, possibilitando a renovação na face da terra, transversalmente ao tempo, ou, nas palavras de Armando:
“Quem vai fazer o ‘universo sonoro’ acontecer é o poeta-compositor [...] ele organiza o mundo, um mundo paralelo; então eu acho estranho quando a arte é muito antropológica no sentido de responder ao que o tempo pede [...] a Arte se relaciona com o mundo contemporâneo, mas, ao mesmo tempo, ela é algo [apartado]. O poeta William Blake dizia ‘a eternidade é enamorada dos frutos do tempo’; [...] eu sou contra a massificação da tecnologia para criar apenas um paradigma mecânico, um uso infantil do dispositivo [...] uma coisa é o artista na relação com o retorno financeiro, outra é na relação com a eternidade; não se pode haver concessão”.
Em "Romantic Games", Armando amadurece o uso de jargões para as cordas com arco, e, sem riquififes, aglutina motivos e os metamorfoseia, numa permanente exposição linear de textura em grupos. Uma referência forte, quer consciente ou não, a saltar aos ouvidos, é a obra Metamorphosen de Richard Strauss, composta entre os anos de 1944 e 1945. Ambas as obras são concebidas para conjunto de cordas com arco: em Strauss um estudo contíguo de rico contraponto para 23 executantes; e em Armando, metade desse número de instrumentos é trabalhado como num jogo entre motivos em bloco. Tanto numa como noutra peça, os temas são revisitados e transmutados: em Armando o lírico é herdado de Strauss, sem que o desenvolvimento temático apareça, num jogo romântico de velar e desvelar. Outra herança é a relação da própria citação ou remissão; em Strauss há o uso direto, porém não plenamente explícito, de tema de Beethoven, enquanto que em Armando há a técnica da imitação, o contraponto como forma de adensamento, e o contorno melódico característico de épocas anteriores.
O conteúdo propriamente musical da música de Armando é percorrido também por um elo inerente de pertença; nas muitas canções e incursões operísticas que tem escrito, o imagético regional brasileiro, os recursos timbrísticos via tecnologias digitais; como partículas sonoras, as rimas folclóricas e os pulsos de danças tradicionais país a fora, são forma de religação do homem que tem um olho no presente e outro no transcendente. Sua música denota uma personalidade como um redemoinho de tentativas, buscas devotadas e coerências.
Ah!... um detalhe: Armando é pernambucano, e, ainda que em sua música, a cultura de seu estado sobressalte orgulhosamente em vários momentos, seus conterrâneos o ignoram quando deveriam justamente ter nele uma considerável voz ativa, e forte influência agitadora do fazer artístico pelo devir que lhe é inerente... se Pernambuco não fosse mais que frevo, os pernambucanos, certamente, o seriam...
Sam Cavalcanti é mestre em música, compositor, crítico e escritor