Numa das estações da minha vida, eu e o meu sócio de então finalmente realizamos um bom negócio em nosso escritório não tão bem sucedido. ...

Pregação a bordo

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Numa das estações da minha vida, eu e o meu sócio de então finalmente realizamos um bom negócio em nosso escritório não tão bem sucedido. Felizes da vida viajamos ao Rio para as assinaturas. Tudo resolvido ainda na primeira metade da manhã, sobrou tempo para um bom passeio, pois as nossas passagens estavam agendadas apenas para o dia seguinte.
Sou apaixonado pelo Rio, que me lembra a arquitetura de Lisboa e de outras cidades europeias, com a sorte de ter como moldura as montanhas, as florestas e o mar. O Centro do Rio ainda possui aquela elegância das metrópoles da década de 1940 do século XX. Lá temos o Teatro Municipal, com a sua imponente composição clássica; o Real Gabinete Português de Leitura com suas colunas, candelabro azul e magnífico vitral;
a igreja de São Francisco da Penitência, de estilo barroco e esplêndido interior dourado e, claro, a Confeitaria Colombo, com o seu charme aristocrático decadente.

Por sugestão minha, fomos almoçar na Confeitaria Colombo. Na época, o salão do primeiro andar parecia estar dedicado ao restaurante e eventos. A geléia que fez famoso o lugar não existe mais, mas a doceria tem muitíssimas outras opções igualmente tentadoras na parte térrea, na qual ficam os expositores cheios de guloseimas. A rua Gonçalves Dias, na qual está situada a Colombo, é muito comercial, diferentemente das ruas moribundas de muitas outras capitais de estados brasileiros. Numa oportunidade anterior, tinha encomendado algumas camisas e um terno numa alfaiataria situada por lá. No retorno do almoço pensei em voltar ao estabelecimento, mas ele já não estava no mesmo endereço.

Seguimos em frente para algumas visitas a pé. Caminhar em boa companhia com tempo livre talvez seja uma das maiores raridades de hoje. Felizmente o meu sócio era tambem meu amigo, e continua a ser, mesmo após o fim do negócio. Outra raridade. As opções para visitação eram inúmeras e todas relativamente próximas: o Paço do Ouvidor, o obelisco da avenida Rio Branco, o camelódromo do Saara, a Casa do Choro, o Museu Nacional de Belas Artes, o Palácio Tiradentes, o Centro Cultural da Bíblia, a Catedral Presbiteriana, o Centro Cultural Carioca, a Catedral Metropolitana, o Largo das Artes, a Biblioteca Nacional, entre tantas outras. Com algum tempo e disposicão o Centro do Rio é um circuito e tanto.

Começamos a caminhada entusiasmados mas, mesmo naquele tempo, já nos dirigíamos para a meia idade, além de estarmos, ambos, fora de forma. Ímpetos juvenis não poderiam mais ser realizados pelo mero concurso da vontade, sem a mediação de sérios impedimentos físicos.
Conformamo-nos, então, com a visão de dois ou três monumentos e replanejamos o passeio em bases mais realistas. Tanto o amigo/sócio quanto eu, éramos fãs do rock brasileiro do anos 1980 e concordamos em visitar um dos “solos sagrados” do gênero: o Circo Voador. Era pertinho, na Lapa e, se fossemos no final da tarde, poderíamos também dar uma olhada nos Arcos. Claro que não daria para ir a pé.

Pedimos parada ao primeiro amarelhinho com faixa azul que passou. Entramos e nos acomodamos.

— Boa tarde! Qual o destino dos senhores?

— Por favor nos leve aos Arcos da Lapa. — solicitei.

— Vão fazer o que nos Arcos da Lapa? — Contestou o antes formal e, agora, inoportuno taxista.

— Li no jornal que fizeram algumas melhorias por lá...

— As melhorias que fizeram por lá foi trocar as calcinhas das prostitutas!

Chocados com a resposta, ensaiamos uma contestação.

— Nosso interesse mesmo é conhecer o Circo Voador, que é um marco cutural da década de 1980 e onde diversas bandas importantes do rock nacional começaram. Minha fala foi solenemente ignorada pelo chofer, que passou a fazer um discurso moralista.

— O que tem mesmo lá é prostituta. Todo homem que eu levo pra lá é atrás disso.

A essa altura o meu sócio/amigo, rindo da situação, disse:

— O senhor é religioso?

— Crente, lavado e remido!

— Pois, então, ele é pastor! — Disse, apontando em minha direção.

O taxista, agora com aspecto furioso, olhou para mim e turbinou a pregação:

— Pois o Senhor deveira ter vergonha de desancaminhar o seu amigo! O Senhor está dando é um péssimo testemunho e exemplo!

Danou-se. Declaro-me culpado de muitos pecados, mas ir a Lapa em busca de prostitutas...

Mesmo diante da situação bizarra e das acusações kaffikianas, permaneci calmo e disse pausadamente:

— Homem, somos casados e não queremos nenhuma prostituta. Tudo o que desejamos é ver o Circo Voador e os Arcos da Lapa. Somente isso.

Mas o diálogo insólito prosseguiu:

— Os casados são os piores e os mais depravados. Todo dia eu levo vários para lá. Até pastores, como o Senhor.

Felizmente, a essa altura, chegamos ao destino, pagamos a corrida e agradecemos. Antes de sair, ainda ouvi:

— Arrependa-se enquanto é tempo!

O meu sócio/amigo, ateu, apenas se divertia, às gargalhadas, com o discurso inflamado e fanático proferido pelo taxista “crente”.

A vida é mesmo cheia dessas siuações inusitadas. Chateou na hora, mas, pelo menos, serviu para eu contar nesta crônica.


Descontadas a ignorância, poucas letras e falta de educação geral do taxista, vivemos mesmo numa época de discursos moralizantes pré-cozidos. A precipitação em “corrigir” os outros é muito grande, como grande também é a dificuldade de ouvir, de entender e de enxergar o outro.

Já que o mundo está cheio de tantos mestres em toda parte, eu, como mau teólogo, mau filósofo, mau professor, mau cronista e mau conselheiro estou cada vez mais silecioso e só emito alguma opinião sobre assuntos pessoais e morais quando alguém, em dificuldade, vem me procurar ou perguntar.

Não dou mais lições, aprendo com as que a vida me dá.


Emerson Barros de Aguiar é escritor neoarmorial, teólogo e jusfilósofo progressista

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  1. Um excelente roteiro sentimental do Rio de Janeiro. Eu, que sou analfabeto em RJ, pretendo usar este seu roteiro, na minha próxima viagem até lá.
    Muito bom, o texto. Concordo com as considerações finais.

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  2. Eu ...Carioca nato ..conhecedor dos locais citados..gostei muito do desenrolar hilario do motorista crente.
    Parabéns Emerson Barros de Aguiar..tiveram uma experiência inusitada.
    Paulo Roberto Rocha

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