Mandacaru é uma planta verde, mas não é um verde feito verde de esperança. É um verde escuro, fechado e que está mais para saudade. E tem muito espinho, muito mesmo, uma infinidade. Sombra, quase não existe, pois no lugar de folhas, tem uns galhos feito esbirros escorando o nada, qual os braços de um espírito clemente, de um cristão crucificado. Deve se por isso que ninguém se encanta com mandacaru.
De tempo em tempo brota dos galhos um fruto encarnado, bem vivo, que lembra um coração arrancado do peito, sofrido de dor, pesaroso, desencantado. Se fosse um pássaro teria um canto triste, como o do acauã. Mas não seria um canto penoso, de chamar seca, não... Seria uma voz sufocada de saudade que nunca cansou de repetir: Didinho, Didinho, Didinho!!
De tempo em tempo brota dos galhos um fruto encarnado, bem vivo, que lembra um coração arrancado do peito, sofrido de dor, pesaroso, desencantado. Se fosse um pássaro teria um canto triste, como o do acauã. Mas não seria um canto penoso, de chamar seca, não... Seria uma voz sufocada de saudade que nunca cansou de repetir: Didinho, Didinho, Didinho!!
Lá se vão 35 anos. Voltei ao lugar onde nasci e me criei. A casa está do mesmo jeito, o derredor quase não mudou, os mais velhos, pai e mãe, partiram. Restaram minha irmã Maria e a sua filha; esta cresceu, casou-se, arrumou família e mora na cidade.
Trinta e cinco anos é muito tempo. No dia em que fui embora meu pensamento dizia que eu não ia demorar. Ia arranjar emprego e ganhar algum dinheiro. Prometi voltar com o inverno. E quando voltasse eu ia comprar uma terra, construir uma casa, criar uns bichos e me casar com Francisca, uma das filhas de uma comadre de minha mãe.
A seca acabou, veio bom inverno e eu não voltei. Francisca – que me disse em carta - ficava todas as tardes na janela para me ver chegar. Perdeu a esperança no dia em que lhe escrevi falando que tinha conhecido alguém. E como disse, não voltei mais. Em vez disso, com o dinheiro que arranjei nas obras, como Candango, comprei um sítio nos arredores de Luziânia. Casei. Dois anos depois, em 1962, nasceu meu filho, o primeiro e o derradeiro.
Conheci doutor Dionísio Lira na construção de Brasília. Um engenheiro respeitado, educado e famoso. Quando meu filho nasceu, registrei ele como Dionísio, em homenagem ao doutor. Mas filho de pobre é assim, quando é batizado com nome de rico, ganha logo apelido, o mais fácil de chamar. E foi assim que ficou, Didinho!
Era 1958. Eu não queria ir embora, porque meu coração desejava ficar. Mas a necessidade obrigou.
Na noite anterior à minha partida, jantamos em silêncio, o que deixava mais presente o canto piedoso e agourento do rasga mortalha e da mãe da lua. Dentro de casa a luz fraca do candeeiro alumiava o nosso silêncio de palavras, que parecia dizer muito. Minha mãe, com os olhos molhados, botou na mesa o bule de café fumegante e um prato com uma dúzia de bolachas secas. Sentou-se e começamos a comer uma refeição minguada, de feijão, farinha e um pedaço de jabá assado. Por sorte nossa família era pequena: ela, meu pai - que era um homem doente - minha irmã Maria, além da filha, de colo, que sobrevivia do resto de leite que chupava do seu peito.
Antes de dormir, minha mãe entrou no quarto e me estendeu um pequeno embrulho. Orgulhosa e de temperamento forte, disse que filho seu não ia pedir esmola viagem afora.
“ Tome e guarde! Fiz um bolso na calça, por dentro. Use em caso de fome ou doença. E não deixe ninguém ver. “
Era parte das reservas de ano de boa safra de algodão e agave. Minha mãe sempre foi uma mulher conscienciosa, prática e desconfiada. Não acreditava em nada onde não houvesse esforço.
“ Só vontade não é o suficiente, tem que acordar cedo, chegar antes do sol, trabalhar duro‘’, costumava dizer com seu jeito rude. Por isso, graças a Deus, nunca faltou comida em casa.
Na sala havia um cubico com uma parede falsa, que era um esconderijo usado para guardar as sobras das safras de fava, feijão e milho, a produção de farinha, e também carne seca e algum pertence de valor. O acesso, que só as pessoas de casa conheciam, se dava por uma portinhola, escondida por trás do petisqueiro. Meu pai construiu o cubico depois que, num ano de grande seca, bandoleiros invadiram a casa e levaram quase tudo o que encontraram. Não morremos de fome porque meu pai se ajoelhou nos pés deles e pediu clemência.
Se havia cuidado para as reservas de comida, o mesmo acontecia com a água de beber. Perto de casa ficava uma cacimba, e antes do amanhecer lá estava eu na beira da cacimba enchendo os barris para o consumo daquele dia. Embora fosse boa a água, não tinha a mesma qualidade da dos tanques do oitão, que vinha das chuvas. Mãe apontava para eles, e alertava: “ Daqui, somente para beber, ouviram?“ Os tanques pareciam um lugar sagrado.
Mudo e cabisbaixo, senti-me obrigado a receber o dinheiro. O que eu tinha juntado com a venda de uns bichos magros não ia dar conta das despesas até arrumar emprego e ser fichado.
Inácio Preto era um vizinho nosso de terra. Outro dia me chegou com a proposta. Falou que a seca estava expulsando muita gente. ‘’ Se antes já não tinha serviço, pior agora que o povo começa a morrer de fome... Não se sabe de fazenda que abra as portas para dar alento a retirante. Quem se acomodou, se acomodou.”
Ele estava indo embora para São Paulo. Me chamou para ir junto. E juro que tinha me animado, mas dias depois ele desconversou sobre São Paulo. Disse que tinha coisa melhor; era nas terras do Goiás. Estavam levantando uma cidade inteira, começando do nada. ‘’ Emprego? A demora é chegar. Lá, serviço é o que não falta ‘’ disse empolgado.
Saí de casa pela madrugada, com o céu escuro, os pensamentos confusos, o coração apertado. Maleta de couro numa mão, um saco na outra - nele um cobertor e uma lata de farinha com carne assada e rapadura. Desci o caminho estreito e enladeirado, que separava o terreiro da porteira.
Antes de fechar a porteira atrás de mim, voltei-me num último olhar. Com os braços vigorosos, mas expressão angustiosa, minha mãe acenava de uma janela; de outra, Maria secava as lágrimas num pano.
O estalo da porteira me despertou para a realidade do mundo que eu ia descobrir. Deixei para atrás aquelas pessoas e comecei a andar. O sol mal tinha nascido e já começava a arder a pele. O mato estava seco, o vento não soprava; as árvores, desfolhadas, pareciam almas penadas.
Último recurso para manter vivas as reses que ainda resistiam, os mandacarus, já murchos, me olhavam, meio assombrados, como se sentenciassem meu futuro, como se quisessem dizer algo, me alertar sobre alguma desgraça vindoura. Me benzi, afastei os pensamentos, continuei a andar. A estrada empoeirada, de repente, tinha deixado de ser o caminho que me levava à feira, à missa na cidade ou à casa de Francisca. Agora era o caminho para a incerteza e o desconhecido, a passagem para o mundo de Inácio Preto.
Marquei um ponto de encontro com Inácio, um mata-burros meia hora de passo ligeiro. A ansiedade era tanta que cheguei na metade do tempo. Avistei ele e mais quatro conhecidos nossos. Distância pouca, seguimos os seis a pé, até à cidade.
De lá pegamos um carro sertão afora, com destino ao Ceará. Meu pensamento continuava em casa, enquanto a gente rodava pelas terras desertas do sertão.
Março tinha passado e o dia de São José, que não caiu uma gota d´água, tinha carregado as últimas esperanças. “ É outro ano ruim’’, disse alguém, que também, como eu, devia estar pensando na família.
Pior que nossa tristeza só mesmo o que se encontrava pelo caminho. De quando em quando se via uma morada abandonada, carcaças de animais nos barreiros secos e pequenas procissões de retirantes. Gente desolada, com trouxas na cabeça, andando sem rumo certo, sem qualquer expectativa.
Chegamos em Crato. O carro parou na praça da Sé, de frente à igreja onde já se encontrava o caminhão pau de arara que ia nos levar até Brasília, um lugar distante que, tinha acabado de saber, nem existia ainda.
Naquele dia – uma quinta-feira do mês de abril – deixei-me ficar contemplando as duas torres da Matriz de Nossa Senhora da Penha. No alto, suas lanças apontavam para um céu infinitamente azul. Suspirei, sentindo o peito apertar. Foi quando pensei em desistir, voltar para casa, meu pequeno mundo. Mas Inácio, que já tinha viajado mais de uma vez, percebendo minha tristeza, aproximou-se; disse algumas coisas a fim de me espairecer. Depois apontou para uma bodega onde havia boa variedade de comida e recomendou que eu fizesse umas compras, pois a viagem seria longa e, a não ser poeira e fadiga, não se tinha muito o que encontrar até o Goiás.
O caminhão começou a rodar, e ainda atravessava a praça quando olhei para a imagem de Nossa Senhora da Penha. Me benzi, baixei a vista, pedi benção e proteção.
No fim de 1958 Brasília se tornara um grande canteiro de obras. Os engenheiros tinham pressa, os serviços corriam. O imenso tabuleiro, com árvores de muitos metros de altura e que dez homens não podiam abraçar, e lugar onde viviam bichos de todas as espécies e tamanhos, tinha se transformado numa capital cheia de pontes, largas avenidas e muitos prédios esquisitos.
Um dia estava eu de volta do serviço para o refeitório, com centenas de homens se reunindo nos galpões para almoçar. Foi quando uma das moças que serviam no balcão da cozinha se aproximou. Me encantei quando perguntou de onde eu era. ‘’Eu vim da Paraíba‘’, disse sem tirar a vista dos seus grandes olhos negros. ‘’Me chamo Maria Lúcia, sou do norte de Minas, não é muito longe daqui. ‘’
E foi assim, foi no meio da poeira do barro vermelho que a gente se conheceu e jurou amor para sempre. Nos casamos quase três anos depois.
Brasília foi inaugurada com muita coisa ainda por fazer e edificar. O dinheiro tinha se acabado, e os serviços escassearam. Decidimos viver em Luziânia, na divisa com o Goiás, numa região verdejante e de ricas fontes de água doce, e muito diferente do meu agreste seco e distante. Um lugar onde não havia fome nem estiagem, e nem mandacaru. Mas eu vivia assombrado mesmo assim, assombrado pela dor da saudade que sentia da família e do meu passado.
Maria Lúcia era dedicada e fazia de tudo para me agradar. Mas o aperto dentro de mim era uma doença sem cura. No entanto, tudo se modificou no dia em que meu filho nasceu. A partir dali a vida passou a ter sentido, e a gente começou a ser feliz.
Didinho deu os primeiros passos, e logo pegou a falar e a correr. Nunca vi tanto afeto, dele por nós, nosso por ele. Era uma criança saudável, inquieta, bonita. ‘’ Desça dessa árvore senão você cai, menino! ‘’, gritava a mãe, preocupada, mas sem esconder o orgulho e a alegria. Uns chegavam e diziam que o menino só tinha mãe. E era mesmo. O bom humor e o lado traquino herdara dela, que vivia de promessas para dar a ele um irmão.
Didinho completou seis anos de idade e continuou como filho único. Ele reclamava a companhia de um irmão e a gente adiava a vinda de outro filho para o ano seguinte.
Uma manhã lhe fiz uma surpresa, o que lhe deu imensa alegria. Comprei-lhe um pequeno cão. Foi o dia mais feliz de sua vida.
A mãe vinha e enredava, dizia que Didinho se apegara tanto ao bicho que não lhe sobrava tempo, sequer, para banhar-se ou comer. “ Estás com ciúmes, mulher, ‘’ brincava eu. Maria Lúcia, por sua vez, jogava os braços, resmungava, abanava a cabeça, sumia para a cozinha.
E assim passavam os dias, e assim levávamos a vida, sem pressa e sem faltas. Didinho chegava, lá vinha o cachorro. Se ia, o animal ia junto.
Mas os ventos estavam prestes a mudar. E foi justamente aquele cão, tão inofensivo e amigo, que dias depois carregou a nossa felicidade, para longe e para sempre.
A história é breve, e decidi contar. Foi assim...
Aquela região do estado de Goiás é coberta por matas, rios e cachoeiras. E aconteceu que um casal de amigos - que conhecemos durante o tempo em que trabalhamos em Brasília, e que veio morar, como nós, em Luziânia - nos fez um convite para acampar por um fim de semana na região das cachoeiras. ‘’ Saia velha é um lugar muito bonito. Conheço bem o lugar,’’ disse meu amigo.
Eu tinha um automóvel, um Jeep modelo 54. Pegamos estrada pela madrugada. Até à região das cachoeiras enfrentamos algumas horas de mata fechada em rodagem estreita e sinuosa. No início nos divertimos muito, mas o caminho, de tempo em tempo, foi surpreendendo com grandes poças d´água, fendas e precipícios, o que fazia o Jeep deslizar, com o perigo de cair em valas de grande fundura. Ás vezes, o caminho se estreitava tanto que a copa da mata se unia, escurecendo tudo em nossa volta.
Eu olhava para Maria Lúcia, e ela se mostrava assustada, dizendo-se mil vezes arrependida por ter metido Didinho em tamanha loucura. Outra vez a beleza do lugar era tanta que ela dava graças a Deus por estar ali. Nosso filho, ao lado, se divertia com a aventura e a presença dos macacos que, a toda instante, surgiam sobre nossas cabeças, irritando o cachorro, que, ao avistá-los, não parava de latir. Por duas vezes encontramos alguns índios Carajás, cuja presença indicava que o nosso destino estava bem próximo.
Chegamos a uma área aberta, onde se via uma campina verdejante margeando um rio de forte correnteza. Dezenas de metros dali a água se chocava contra imensos blocos de pedras, provocando um véu que se espalhava pela atmosfera e pulverizava árvores e arbustos.
Pegamos uma pequena trilha, a pé, e em alguns minutos vimos um cenário fascinante e de rara beleza. Aquele rio estreito e agitado tinha em seu caminho um paredão de pedra, uma espécie de escada natural com vários degraus, onde água e espuma se confundiam, rolando até alcançar uma piscina de água morna e cristalina. Era a cachoeira de Saia velha.
Passamos ali todo o dia e arrumamos um bom local para montar o acampamento e passar a noite com segurança. Fizemos reserva de lenha, e acendemos três fogueiras; assim a gente ia se manter protegidos do frio e dos animais.
Na manhã seguinte o sol e os pássaros nos mostraram a exuberância da natureza. O nosso amigo colheu algumas frutas e, reunidos, tomamos café em clima de boa conversa. A cachoeira continuava com seu espetáculo, Maria Lúcia se sentia radiante e eu feliz e realizado.
Mas essa felicidade não durou muito tempo. Às nove e dez daquela manhã ouvimos um grande alvoroço dos macacos. Eu sabia que eles ficavam assim quando se sentiam ameaçados. Foi quando avistamos uma grande serpente numa das margens do rio, coisa de 200 metros de onde a gente se encontrava. E aconteceu que o cachorro correu para onde estava a serpente, e Didinho correu para onde tinha ido o cachorro. Foi um desespero. O mato alto e fechado em alguns pontos não nos ajudou a achar Didinho. Corremos, gritamos, procuramos por toda parte até o último instante de luz e o limite de cada um.
Não encontramos nem um sinal de nosso filho por todo aquele dia. Veio a noite e a mata se encheu de sombra e escuridão. Os ruídos dos animais partiam de todos os lados; e muito, muito mais doloroso do que esses sons era ouvir o lamento de Maria Lúcia que, a mirar o rio, passou a noite em pé, imóvel e a repetir, com os olhos bem abertos: ‘’ Didinho, Didinho, Didinho!
Na madrugada seguinte, ainda escuro, nosso amigo pegou o carro e foi buscar ajuda na cidade mais próxima. Cerca de duas dezenas de voluntários vieram, e armados com paus e facões saímos desesperadamente a procurar Didinho. Antes de me retirar, abracei minha mulher e prometi trazer ele, vivo e em paz, de volta para seus braços.
Segui o curso do rio, e mais à frente, encontrei uma trilha. Andei, andei muito. Os pés, inchados, estavam a ponto de sangrar. Nada de Didinho, nenhum sinal do cachorro.
Eu estava exausto. Fazia muito calor e a sede me sufocava. Mas eu tinha feito uma promessa a minha mulher. Por isso eu precisava seguir, por isso eu não devia parar nunca. No entanto, as pernas doíam, os pés ardiam e eu respirava com muita dificuldade. Os pensamentos começavam a ficar confusos. Desesperado, quis voltar.
Parei, olhei para trás e disse para mim: ‘’ Isso não faz sentido. Eu preciso voltar, acho que nem sei mais onde estou. Ah meu bom Deus! Me ajuda! ‘’
Foi nesse momento que senti dentro de mim algo estranho, como uma luz, uma voz. Veio à mente, bem visível, a imagem de Nossa Senhora da Penha, a mesma que vi em Crato. Então eu caí, de joelhos, e comecei a chorar, descontroladamente.
Depois, coisa de minutos, já mais calmo, respirei fundo, ergui-me e continuei a andar. Em passos firmes e decididos, segui por cerca de cem metros. Nesse ponto a trilha fez uma curva para a esquerda. Diante de mim vi surgir um índio, já velho. Tendo o corpo pintado e plumas na cabeça e na cintura, segurava um arco maior do que sua altura. Fitou-me por algum tempo e em silêncio. Em seguida fez um movimento com o braço, indicando para segui-lo.
Descemos por uma pequena encosta e chegamos a uma espécie de abrigo, sombreado por grande árvore. Então ele apontou para um canto, na margem do rio. Alguns índios arrodeavam uma fogueira e comiam o que parecia ser peixe e farinha de mandioca. Em vaga lembrança vi outros dois moldando, com o barro liguento da margem, utensílios como tigelas. Estava tão cansado que custou-me algum tempo para entender o que mais viram meus olhos.
No meio desses dois membros Carajás havia uma criança. Estava de costas, imóvel, brincando com o barro. Meu coração estremeceu!
‘’ Meu Deus! ‘’, disse sem acreditar. A única coisa que me passou pela mente foi correr e abraçá-lo, mas as pernas não se moviam.
Respirei fundo. Fui em sua direção. A voz saiu quase muda: ‘’ Didinho...’’ ‘’ Eles me acharam, papai... Eu falei que o senhor vinha me buscar!, ‘’ disse enquanto me abraçava.
Chegamos ao acampamento e ele, aos prantos, correu para a mãe, que o tomou em seus braços, curvou o rosto sobre o dele e o beijou carinhosamente. Mas uma coisa muito triste aconteceu: Maria Lúcia, abraçada com o filho, disse baixinho, sem tirar os olhos do rio: ‘’ Você viu meu filho Didinho?’’
Naquele dia voltamos para casa e tentamos ser a mesma família de antes, mas os pensamentos de Maria Lúcia continuaram no rio, esperando a serpente lhe devolver o filho. Sua saúde piorou e semanas mais tarde, sem outra forma de controlar suas crises de delírio, o médico decidiu interná-la num hospício da região.
O cachorro jamais foi encontrado. Restamos nós dois, ele e eu, um carente do outro. A um primeiro interessado, vendi o sítio e nos mudamos para o interior de Minas, onde vivo até hoje, sozinho. Didinho estudou, casou-se, tem dois filhos e Mora no Guará.
Diz um ditado que a gente nasce para ser feliz, porém se a gente vai ser feliz ou não, só o destino e o tempo vão dizer. Mas às vezes têm coisas que encontramos pelo caminho, e elas podem ser um aviso, um sinal. No dia em que fui embora vi mandacarus me olhando assombrados, como se sentenciassem meu futuro. Parti mesmo assim. E assim é até hoje, quando vejo um mandacaru me lembro de Maria Lúcia. Ela correndo, gritando, coração arrancado, os braços estendidos feito um cristão crucificado, feito um espírito clemente.
Maria Lúcia morreu de saudades de Didinho; eu morri de saudades de Maria Lúcia.
* História baseada em fatos reais.
Célio Furtado é artista plástico e cronista