Entusiasmado com as Bucólicas de Virgílio, poema que lhe foi apresentado por Mecenas, Otávio César pede a seu amigo, conhecedor e protetor das artes e dos artistas, que o poeta mantuano escreva um poema didático sobre o campo, de modo a incentivar o trabalho e a produção agrícola. Virgílio aceita o encargo e, no ano 29 a. C., quando Otávio César já é o princeps, o primeiro homem de Roma, surge em versos hexâmetros latinos e dividido em quatro livros o belíssimo Geórgicas, título que significa “dos trabalhos na terra”, em grego. Como se trata de um texto longo, gostaria de me referir aqui apenas ao primeiro livro desse poema, belo e extraordinário, apesar de didático e de ter sido feito sob encomenda.
O Livro I das Geórgicas começa mostrando a primavera como o início dos trabalhos do campo. O trabalhador tem que se esforçar, para poder subjugar a terra. Para esse labor, é necessário ter o conhecimento das constelações, da fabricação das armas do agricultor, como o arado, fazer preces e sacrifícios aos deuses, sobretudo a Ceres, de maneira a poder começar o processo de lavragem e semeadura dos campos. A ideia que perpassa o poema é a de que a vida é trabalho constante; trabalho que necessita de organização e de previsão do como e do quando se fazer, daí a necessidade da observação constante dos astros, a fim de que os sinais possam ser conhecidos e os presságios revelados.
Nessa construção, que podemos dizer ser um primeiro chamamento para organização do trabalho agrícola, Virgílio se utiliza de alguns mitos, que já haviam se fixado literariamente. Ele retoma, por exemplo, os conceitos de Hesíodo sobre as idades das raças humanas, conforme se encontra no poema Trabalho e dias (século VIII a. C.). A Idade de Ouro de Saturno, momento em que a natureza era pródiga e o homem não precisava trabalhar, pois a terra tudo lhe concedia, será substituída pelo trabalho do homem, abrindo as entranhas da terra para daí retirar o seu sustento. A intertextualidade com Hesíodo é clara, sobretudo quando sabemos o agricultor virgiliano encontrar-se na Idade de Ferro, em que as armas do lavrador se tornaram armas de guerra — “As curvas foices se fundiram em rígidas espadas” (Et curuae rigidum falces conflantur in ensem, verso 508). Além de ter de trabalhar a terra para viver, o homem anda às voltas com as guerras, que paralisam os trabalhos dos campos, sem falar na morte inútil dos jovens, tema já apresentado na tragédia Eumênides, de Ésquilo.
Por outro lado, quando Virgílio se refere à importância da observação dos astros para os trabalhos do campo, ele chama a atenção para o percurso do sol, durante os doze meses do ano — a eclíptica solar —, cujo trajeto oblíquo passa por 12 constelações (hoje, são 13), circunscritas entre as três das cinco zonas da Terra, excluídas aí as polares — o Equador, o Trópico de Câncer, no hemisfério norte; o Trópico de Capricórnio, no hemisfério sul –, fornecendo, assim, o material astronômico para o poeta Ovídio escrever o mito de Faetonte e o desastre desse filho de Febo, na condução do Carro do Sol; episódio que se encontra relatado no Livro II das Metamorfoses do poeta dos Amores. Virgílio vai um pouco além, referindo-se ao mito de Niso e Cila, um esboço do Cyris, poema posterior, a ele atribuído. Esse mito também será retomado por Ovídio, como o primeiro episódio do Livro VIII das Metamorfoses.
Considerando todo este processo de leitura e de escritura, é bom termos em mente que “ler” é um verbo que vem do trabalho no campo, seja na língua grega — λέγω —, seja na língua latina — lĕgo, lĕgĕre —, cujo primeiro sentido é “colher”, “escolher”, supondo, portanto, a um só tempo, seleção e apreensão. Só depois é que, em grego, passaria a designar "dizer" e, em latim, tomaria o sentido de "ler", ambos translatos, como conhecemos hoje. O leitor, portanto, é aquele que colhe o que se lhe apresenta, num processo de escolha, atribuindo novos significados, para poder dizer em novas organizações, já como escritor, aquilo que ele apreendeu.
Esta é a inter/transtextualidade, que revela como o escritor é um leitor privilegiado.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL