No início do poema sinfônico que narra esta saga, a compositora francesa Augusta Holmès introduz solenemente os quatro principais personagens da história. O rei, Cefeu, a rainha Cassiopeia, sua filha Andrômeda e Perseu, o herói. Individualmente eles são apresentados com respectiva pompa pelos trompetes, em períodos concluídos por outros metais, com suave rufar de bumbos e renhir de contrabaixos.
Após a apresentação, a vida faustosa e pródiga do domínio etíope é majestosamente encenada pela orquestra esfuziante com gloriosas citações temáticas em arrebatadora melodia.
Contudo, pouco mais, emergem da grandiosa ambiência, virtudes não tão nobres, pertinentes à condição humana, capazes de gerar dissabores como, por exemplo, a arrogância e a vaidade da rainha. Cassiopeia insiste em dizer publicamente que entre todas as nereidas, lindas criaturas habitantes das profundezas marinhas, não há uma sequer tão bela quanto ela. Filhas de Nereu, o deus das ondas, as ninfas se sentem indignadas com a ofensa.
Logo se percebe o clima que altera o romantismo descrito anteriormente. As nereidas revoltadas com a humilhação provocada pela rainha unem-se marchando em direção a Poseidon, o soberano deus do mar, casado com uma delas, que logo se solidariza com o ultraje relatado. Exigem que ele tome uma providência imediata. A consequente ira de Poseidon é narrada na profusão musical dos temas atormentados que evidenciam a trágica decisão de enviar, como vingança, um poderoso monstro para destruir a Etiópia. Com golpes robustamente ritmados pelas percussões e a orquestra em tutti, o drama reflete a temerosa situação e se conclui fervorosamente.
Em meio a toda angústia, muito preocupado, o rei Cefeu consulta o oráculo de Zeus em busca de aconselhamento divino, quando lhe é sugerida a inesperada e cruel solução: Só o sacrifício de sua filha virgem, que deve ser oferecida ao monstro Cetus, salvaria a Etiópia. Não tendo escolha, Andrômeda é levada à praia para ser acorrentada, e então devorada.
Agora a orquestra silencia finalizada por breves pizzicatos de contrabaixos. Andrômeda está só. Ela e a noite estrelada, à beira-mar. A música retrata com desolação, a dolorosa surpresa. Sem culpa alguma, estarrecida e em prantos, ela medita sobre a imprevisibilidade do destino, jamais imaginado, e como tudo mudou tão de repente. As cordas lamentam nitidamente a situação pesarosa, que a faz pensar nos males da soberba, da inveja, do despeito, da ira, e em suas fatais consequências. Restam-lhe o medo e a apreensão diante da iminente chegada da horrenda criatura que lhe ceifará a vida.
Novo silêncio conclui os sombrios pensamentos, que vão se acalmando resignados e Andrômeda passa a contemplar a abóbada celestial. Eis que identifica cintilações distantes, confundindo-se com as estrelas, que aos poucos se aproximam, bem definidas na delicadeza das harpas. Mas o brilho alvissareiro se mescla a algo que se movimenta sob a superfície escura do mar, revolvendo a água que também cintila em contraponto com a imagem que se delineia, lá em cima. É Perseu, voando garbosamente montado em Pégaso! A aparição é inicialmente citada por delicadas flautas, entrelaçadas em volteios espiralados, apoiados na suavidade das trompas, com repetidas sequências de quatro notas. Ao avistar a bela Andrômeda acorrentada à beira-mar, Perseu ordena que Pégaso aterrisse em sua direção, como descrevem os metais em ritmo marcial que lembram a cavalgada wagneriana das valquírias.
Ao chegar em terra, ele aproxima-se de Andrômeda. Amedrontada, ela o adverte sobre a presença do monstro Cetus, que se ergue do mar escuro e o combate se inicia. O poema ilustra com heroica veemência orquestral o duelo nitidamente vantajoso para Perseu. Em crescente frenético, toda a convergência sinfônica foca-se na sua vitória espetacular, exposta de forma radiante pelo tema principal. Tudo enfim se concentra na densa passagem que ilustra a surpresa de Perseu, emocionado perante a beleza da vítima salva, por quem impetuosamente se apaixona. A música se funde à intensidade do sentimento com grandiosidade encantadora e explode com a força triunfante do tema.
Passada a tensão que envolveu o vitorioso desfecho, Augusta Holmès restabelece o sentimento de paz profunda e envolvente num cenário pincelado por bucólico oboé, seguido do clarinete, contrapostos ao lirismo das cordas, em delicado ritmo ternário, lembrando uma graciosa valsa.
A vida volta calmamente ao normal com o casal apaixonado, abençoado pelos pais, já residindo em Argos onde foram construir o lar, posteriormente agraciado com a chegada dos filhos. Nem a tentativa de vingança de Fineu, o príncipe a quem Andrômeda havia sido prometida antes do trauma, surte efeito, nem merece relevância.
No trecho seguinte, a música faz menção ao transcurso do tempo, entoada pelas cordas, adornada por flautas que trinam cadenciadas, evidenciando a inexorável cronologia da vida e sua efemeridade.
Completa-se então o ciclo do destino e tudo se esvai em delicados harpejos que simbolizam o fim de uma etapa. Perseu e sua Andrômeda então contemplam na amplitude celeste a imensidão cósmica para onde o casal se dirige eternizando-se na Constelação que os imortaliza com o nome de sua amada.
Augusta Holmès, compositora e poetisa parisiense tão brilhante que precisou se esconder, desde cedo, atrás de um nome masculino, como tantas outras mulheres sufocadas pela hegemonia masculina, sintetiza o Mito de Andrômeda com requintada musicalidade neste poema sinfônico. Autora de muitas outras belas músicas e poesias, conseguiu ultrapassar as barreiras de seu tempo com notável expressividade. Foi impedida de estudar no Conservatório de Paris, que absurdamente não admitia mulheres, mas chegou a ser reconhecida como musicista excepcional por Wagner, Saint-Saëns e por seu ilustre professor César Franck, além de ter a honra de ver três das filhas que teve com o poeta Catulle Mendès retratadas em tela por Auguste Renoir, em 1888.
Entre suas peças, destacam-se seis poemas sinfônicos, óperas, cantatas, obras para piano, orquestra de câmara, a Ode Triunfal para coro de 900 vozes e orquestra com 300 instrumentos, e a Sinfonia Lutèce, que mereceu de Sain-Saëns o seguinte registro:
“Como as crianças, as mulheres desconhecem os obstáculos e sua força de vontade quebra todas as barreiras. A senhorita Holmès é um exemplo”.
Assim como Augusta, são inúmeras personagens da história das Artes e das Letras que ainda permanecem injustamente pouco conhecidas ou divulgadas. Há de se imaginar do que as mulheres teriam sido capazes se não lhes houvessem sufocado e encoberto sublimes talentos que desvelariam à humanidade a força inspiradora que trazem consigo ao mundo. Lamentavelmente inferior à repressão inominável de que foram vítimas.
Felizmente, "três andrômedas" se perpetuam como Música, Constelação e Mitologia. Um trio invencível, como as grandes e augustas mulheres!