Num mundo de paz, trabalho e produção, pra que serviam, afinal, caçadores e armas? Teriam perdido de vez o bonde da história ao ponto da evolução natural, em sua forma normal e cotidianamente brutal, simplesmente fazê-los desaparecer da face da terra? Claro que não. Aqueles paleolíticos tinham seu mérito tecnológico registrado e em pleno uso, e logo iriam se utilizar dos avanços neolíticos propiciados pela agricultura e seu modo de vida sectário. Enxadas fundidas em bronze por agricultores, já tinham dado seu aviso às velhas espadas de madeira dos andarilhos.
A depender porém dos agricultores e seu conselho de sábios anciãos, a opção excludente não existia, simplesmente porque eram aqueles belicosos caçadores e não eles – singelos e pacíficos agricultores – que detinham a posse das armas. Por onde fossem, levavam acantonados em seus estojos de pele animal um arsenal de lanças, arcos, flechas, redes, clavas, fundas, facas e punhais de pedra lascada.
Urge então jogar um pouco de luz no passado de todos nós, para que se entenda melhor o quanto foram aqueles dias o motor das grandes transformações que estavam por vir.
Situados de volta – e de vez – na aldeia, a gente paleolítica e sua velha tradição de violência e erronia, que a prática predatória contra o mundo animal exigira sempre deles, não demoraria muito a fazer de nós, porcos, àquela altura aprisionados em pocilgas, meros fornecedores de carne e gordura. Os ex-caçadores podiam doravante avançar no plano preconcebido de apossarem-se completamente do surpreendente resultado alcançado pelos desprecavidos agricultores, e, nesse sentido, a lista de ações rapidamente ganhou diversidade e se multiplicou.
Começaram por criar insegurança – filha primogênita do terror. E assim, no mundo relativamente seguro da aldeia, era como se, vez em quando, o espectro sinistro de uma loba famélica e tremebunda se insurgisse por instantes aos olhos de todos, numa imagem esgazeada, fugaz, intermitente, que se erguesse no pálio da aldeia. Dentes rilhados e à mostra, do alto do seu ódio e medo teatralizado, aquela assombração rosnava para os aldeões.
Os paleolíticos tinham como certo que uma situação permanente de insegurança logo dissolveria no espírito aldeão alguns dos mais valiosos e inspiradores propósitos, que, certamente, os mantivera até ali no rumo daquele inesperado progresso, e, em vez disso os arrastaria a um estado tenso de espírito, de alerta contínuo, perplexidade a ser talvez seguida de apatia, uma vez quebrado seu élan produtivo. A meta do sinistro plano exigia, pois, pra seu sucesso, a instauração do terror e da discórdia entre homens e mulheres, e fora exatamente esse o clima instaurado na vida aldeã por mais um plano bélico de caçadores, que, ainda sem saber, estavam naquele momento forjando as bases das grandes mutações profissionais que o futuro logo reservaria à vida da sociedade primitiva, e das quais seriam eles, os caçadores, os grandes beneficiários, ao lado de uma minoria de habitantes tradicionais.
Não é a toa que para remanentes do extenso período da caça, tudo de mais importante – ainda hoje – assente-se no emprego das armas, e unicamente nelas se justifique. E é possível se dizer que a insistência milenar nesse tipo de crença e postura humana parece ser um revérbero – ainda hoje –, daquele decisivo sucesso obtido no passado longínquo por agentes paleolíticos.
Diante disso, é razoável supor que uma posse de armas, sem que no entanto delas se faça uso, mesmo que por curto período, não fosse de modo nenhum o que estava nos planos dos líderes das hordas, embora um parte considerável de seu contingente mais jovem estivesse já, naqueles anos de transformação neolítica, propensos a trocar a vida incerta e peregrina que levavam circundando aceiros de floresta, pela regularidade diária dos que se alternavam entre um trabalho duro e seu justo remanso no fim do dia. Uma rotina assegurada pelas regras da aldeia.
Seus líderes, porém, ciosos do próprio poder e da oportunidade que estavam enxergando para um crescimento como até então jamais tinham tido, não iam aceitar abrir mão dessa que é a mais longeva das culturas humanas.
Ela tinha sido desde sempre hegemônica nas lutas pela sobrevivência, lutas que resultaram, para efeito de outras espécies, no apogeu dessa humanidade tostada de sol, que são os Sapiens, e naquela dos austrais e peludos Neandertais, cujos olhos refletem o azul das geleiras, e em cujas mentes a atividade de perseguir, abater e retalhar fosse talvez a própria razão da existência.
Segundo, porém, a doutrina social dos remanentes, toda e qualquer aplicação social, da educação das crianças ao aprendizado da língua, podia ficar em segundo plano. Esse aplique deveria se orientar sempre no sentido da louvação e rendição ao poder emanado das armas. Para eles, a educação podia se resumir num contínuo treinamento e adestramento na disciplina.
Mas, para os pacíficos aldeões de sempre, o pesadelo começou de verdade com a estranha irrupção de uma recorrência de incêndios ocasionais nas florestas próximas; não bastasse isso, as plantações amanheceriam depois incineradas. Desnecessário dizer que, nessa altura dos acontecimentos, nós porcos tínhamos perdido completamente o acesso às lixeiras; nossa presença no entorno da aldeia fora substituída pela do cão, e, no começo das agressões incendiárias, alguns deles eram encontrados mortos e semicarbonizados pelos aceiros da mata, no entanto deixando ver pelo corpo os golpes que lhes foram desferidos.
Nada porém daquilo tinha sido visto antes pelos moradores de alguma aldeia, que distava em média 30 quilômetros da próxima, espaço esse que era do quanto precisavam para se abastecer dos recursos naturais daquele habitat. Tinham as aldeias, até ali e até aonde a memória alcançava, vivido em paz e em perfeito recolhimento em relação umas às outras. Nunca D’antes Guerreado.
Mal raiasse o dia, porém, em uma daquelas manhãs subsequentes à última simulação – evento de falsa bandeira –, e pronto! alí estava ele, o agitador, no centro da aldeia. O farsante soca o ar enquanto conclama os aldeões à desforra; ele brande seu clima agitado de guerra; insuflava-os, como é natural, a pegar em armas, num momento em que os rumores se cruzam, de boca em boca.
Quando uma nuvem de desgosto nublava já a alma tão pacífica dos aldeões, normalmente custosos de acreditar que vizinhos de aldeia tivessem, durante a noite, se dado ao esforço de um deslocamento de grande distância, unicamente no plano de praticar tamanha maldade, era a vez de irromper a notícia de alguém dando o testemunho de se haver levantado no meio da noite e visto os archotes moverem-se na escuridão.
Era urgente que o conselho da aldeia criasse os primeiros grupos de defesa, e os jovens oriundos da vida nômade seriam certamente conclamados para tal, tidos certamente como os mais indicados para integrá-los. Por outro lado, a voz da experiência em assuntos de luta, os caçadores mais velhos, fora chamada a tomar parte no conselho da aldeia, talvez sem desconfiarem os anciãos do conselho que a milenar astúcia guerreira dos novos participantes já tinha seus planos entabulados, e muito menos sem saber que esses planos centravam-se na criação de uma grande armadilha para todos dali, ingênuos revolvedores de estrume e leirões de terra.
Não se sabe o nível de relutância em aceitar aquela solução oferecida pelos caçadores, fruto que tal, sem dúvida, da experiência vivida por eles em sua recente atividade passada de predação pelos campos de caça: A Fortificação. Ao tomar assento no conselho geriátrico, foram os caçadores bastante enfáticos na necessidade de se construir um dique de contenção ao inimigo; um fosso; qualquer coisa que contribuísse para devolver a tranquilidade que estava faltando naquela aldeia para que se pudesse, enfim, trabalhar em paz. Foi a primeira vez que se falou em uma muralha de pedra.
A muralha, com minaretes de guarda, era o que estava faltando para, de uma vez por todas, encerrar os agricultores na própria cela por eles mesmos edificada e construída com recursos próprios. A obra era gigante e abarcava até mesmo a parte do rio que banha o limite contíguo da aldeia, para que de água não fossem privados por um eventual cerco do inimigo. “O inimigo” – sempre ele. Esse sistema de financiar a autodestruição, bem como as de seus interesses, governos e nações, fundou-se ali. Essa sistemática de usar a riqueza do inimigo para com ela financiar a própria ruína deste, seguiria evoluindo por milhares de anos mais pra frente, e se tornaria um dia um dos mais valiosos trunfos do Império dominante, pleno de forças numerosas e armas sofisticadas, que assim destruiria seus contestadores usando da própria riqueza financeira sequestrada dos que a tinham acumulado, e sem saber, feito a bobagem suicida de confiá-la às mãos de falsos aliados.
A aldeia, porém, com seu histórico de conformação espacial, até ali inserido em um límen, flexível por definição, preparava-se para ceder lugar a um novo perímetro demarcatório de limes, fixo por definição, e... asfixiante. Encerrados todos em chiqueiros, o destino de gado antes concebido a equinos, bovinos, caprinos e suínos seria de agora por diante estendido aos huminos, com licença da palavra.
A partir daí, a separação de classes na sociedade primitiva não parou de avançar, e iria culminar na figura de um Rei que, como nos tempos da caça, vivia isolado em uma fortaleza, e esta que – doravante chamada de Palácio – seria edificada dentro dos limites de uma aldeia agora cercada por muralha. Esse chefe guerreiro não tardou a chamar para si o que antes estivera restrito ao mundo doméstico dos aldeões: a direção e oficialização do culto religioso, que fora sempre um encargo do pai de família. Incorporada aos ofícios do Chefe da Guarda, a religião vinha agora emprestar ao futuramente pomposo soberano um novo caráter de transcendência, e essa deificação era a plataforma legal que estava faltando para criação da primeira dinastia.
A prática do xamanismo da aldeia primitiva, com seu apelo à magia remanescia da idade paleolítica, e sua sobrevivência até ali, na sociedade agrícola mais avançada, representava uma necessária unidade ritualística capaz de englobar a diversidade dos deuses domésticos, para fins de união das tribos familiares. O xamanismo agrícola, é natural, criara ou transformara rituais mais antigos tendo como foco a busca por chuvas e boas colheitas, e para os ex caçadores que ora se entronizavam no poder, era inevitável que o chefe da horda, que em breve seria aclamando Rei, se vestisse na persona dos antigos xamãs, e prometesse, como sempre, fartura e bem-aventurança – às custas das armas, claro.
Tomado de poder absoluto, o primitivo chefe de milícia passaria a constituir e personificar O Estado, e a englobar em sua morada praticamente todas as atividades da coletividade, antes cabíveis ao mundo civil – um novo e genérico nome adotado para a massa de agricultores e de profissionais frutos da cultura agrícola, e que, aos poucos, iam surgindo na nova sociedade neolítica –: entre elas, a prática transcendente, com seu panteão de deuses (um imenso sacrário concebido para alojar a diversidade de deuses que forçosamente lhes eram trazidos para registro e acomodação) agora sob custódia da soberania; o local de reunião dos sábios; o lugar dos castigos, onde a prisão física vinha substituir o exílio antes aplicado pelo conselho aos reincidentes em quebras da lei consuetudinária e anterior à escrita; o salão dos julgamentos, e mais, muito mais.
Instituições antes inexistente começaram a surgir das entranhas da Fortaleza, como a equipe de escribas, cujas funções logo se bifurcam entre notários e zeladores da nascente escrita, enquanto a função sagrada do monarca seguiria se desdobrando em um corpo de sacerdotes.
A verdade é que, nesse processo, os aldeões foram sendo despojados de toda e qualquer atividade que os desviasse das enxadas, fizesse-os trilhar uma folga do intelecto que acabasse por levá-los a pensar, e esse pensar os levasse à formulação de planos para o futuro. Restava-lhes, talvez como consolo, os encontros ocasionais na Ágora, o centro circular da aldeia, mas isso, sem sequer desconfiarem que, àquela altura, a Ágora já contava com seu espaço regular para expediente dos ‘’espias’’ do Palácio.
Aí por volta do ano 3000 a.C, tinham os homens acabado de colher, enfim seu mundo mais tenebroso, o qual já não parava de se expandir e de se desenvolver à vista de todos. Rapidamente ele se colocaria à anos-luz daquele que nós, porcos, sonháramos um dia, e que, aos poucos, fez a violência crescer entre os humanos. Um mundo que viria a depender bastante do ferreiro e de sua forja: eis aqui, portanto, o primeiro profissional liberal da história, o ferreiro.
Alberto Lacet é artista plástico e escritor