Na obra de Carlos Drummond de Andrade , melancolia e ironia se alternam ou se confundem, concorrendo para traduzir com desencanto e humor ...

Melancolia e ironia em Carlos Drummond

ambiente de leitura carlos romero cronica conto poesia narrativa pauta cultural literatura paraibana chico viana ironia melaconlia carlos drummond de andrade poema jardim da praca da liberdade
Na obra de Carlos Drummond de Andrade, melancolia e ironia se alternam ou se confundem, concorrendo para traduzir com desencanto e humor o percurso existencial do eu lírico. Desde o primeiro livro, "Alguma poesia" (1930), Drummond se utiliza de procedimentos estilísticos em que se destaca o enlace entre a representação melancólica e o contraponto irônico. A própria autoatribuição de gauche, presente no “Poema de sete faces”, é uma maneira jocosa de tratar o sentimento de inadequação à realidade.

ambiente de leitura carlos romero cronica conto poesia narrativa pauta cultural literatura paraibana chico viana ironia melaconlia carlos drummond de andrade poema jardim da praca da liberdade
Outro exemplo ocorre em “Fuga”, poema no qual se critica a alienação dos brasileiros em relação à Pátria. Nele, a similaridade de fonemas finais em palavras contíguas, presente no penúltimo verso, concorre para ironizar nosso fascínio pelo estrangeiro. Se a nossa basbaque admiração passou da Europa para os Estados Unidos, somos os bárbaros que “se entregam perdidamente/ sem anatólios nem capitólios/ aos deboches americanos”.

Procedimento semelhante ocorre em “Jardim da Praça da Liberdade”, por meio da referência aos “tanques langues” que ressaltam a pouca brasilidade do lugar. O efeito é diferente do que se verifica no poema “Igreja”, onde a inversão de joelhos em geolhos parece visar ao destaque do substantivo olhos, nele incluído. Que olhos? Sem dúvida os do eu poético, hipnotizados pelo movimento piedoso, porém involuntariamente erótico, das pernas em genuflexão.

Certamente a mais representativa fonte de ironia em Dummond liga-se à temática do desejo sexual, conforme se percebe em "O amor bate na aorta". Muitos dos procedimentos linguísticos usados nesse poema operam no sentido da desautomatização e da ambiguidade. Para sugerir que os encontros e desencontros amorosos viram "o mundo de cabeça/ para baixo", confunde-se a própria linguagem em construções paronímicas e homonímicas mediante as quais o amor ora bate, ora ronca na porta, na aorta ou mesmo na horta. Referências à natureza associam-se a designações da anatomia humana, indicando estas últimas a decadência física e a consequente impossibilidade de satisfazer o desejo.

Uma expressiva alusão a essa impossibilidade encontra-se no verbo constipar; “fui abrir e me constipei” — escreve o poeta no terceiro verso da segunda estrofe, sugerindo um duplo incômodo físico decorrente da extemporânea pretensão amorosa. Constipa-se quem se atreve a sair à noite para um encontro amoroso; e constipam-se sobretudo os velhos, nos quais é frágil a saúde respiratória. O verbo “constipar” indica contenção ou congestão de fluxos secretórios. No contexto do poema, ele representa o preço pago em razão do impulso erótico extemporâneo e antecipa outras referências irônicas ao amor senecto, que ronca na horta — certamente mais de sono que de prazer – entre o apelo sublimado das laranjeiras e as solicitações picantes das uvas; meio verdes, estas se confrontam com os desejos já maduros.


Como uma espécie de complemento à boca “murcha dos velhos”, cujos “dentes não mordem”, vão aparecer em “Sentimento do mundo” as dentaduras duplas, que infindavelmente ostentam o seu “sorriso técnico”. Graças a elas a boca enfim se liberta “das funções poético-/sofístico-dramáticas/ de que rezam filmes/ e velhos autores”, de modo que pouco significam os atos simbólicos vinculados ao órgão bucal em face do desmonte orgânico representado pela perda dos dentes. Resta ao eu lírico, ironicamente, esperar que as dentaduras venham consolá-lo de “não sei quantas fomes/ ferozes, secretas”.

Em “Necrológio dos desiludidos do amor”, as referências anatômicas buscam ironizar o romantismo dos amantes que, por desencanto, suicidam-se. Para isso o autor confere literalidade a significados convencionalmente simbólicos e se utiliza de um léxico que destrói, por sua vinculação aos processos fisiológicos, a aura tradicionalmente conferida ao amor:


Os médicos estão fazendo a autópsia dos desiludidos do amor. Que grandes corações eles possuíam. Vísceras imensas, tripas sentimentais e um estômago cheio de poesia.

Vê-se que, adstritos à esfera física, os termos associados à representação amorosa ganham outro sentido. Terminam destacando, em razão do seu emprego impertinente, a cômica impertinência de certos arroubos emocionais. A ironia se completa com a referência à atitude das mulheres, que se deleitam com ver os homens as perseguirem sem jamais alcançá-las.

Enfim, a ironia em Drummond não deixa de ser um jeito reto de rir do “anjo torto” que o mandou ser gauche na vida. É uma forma, se não de destruí-lo, de desconcertá-lo com a imprevista e superior aceitação desse duro desígnio.


Chico Viana é doutor em teoria literária, professor e escritor


COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE

leia também