Entre os principais nomes da chamada Época de Ouro da nossa música popular encontra-se o do compositor carioca Lamartine Babo. Conforme escreveu Suetônio Valença, seu biógrafo, Lamartine “não conhecia nenhuma nota musical nem tocava qualquer instrumento, conseguindo, no máximo, marcar o ritmo na caixa de fósforos e no chapéu de palha”.
Essa suposta deficiência técnica do compositor era superada, segundo Suetônio Valença, com uma “musicalidade exuberante”, que ele traduzia imitando, na boca, os sons dos instrumentos de uma orquestra.
Dois respeitáveis depoimentos atestam a grande musicalidade de Lamartine Babo: o primeiro, do escritor e compositor pernambucano Nestor de Holanda, o outro do maestro Radamés Gnattali.
“Lalá para os íntimos, é uma orquestra completa [...] Orquestra sim, porque Lamartine se senta à mesa do bar e mostra melodias aos amigos, imitando qualquer conjunto instrumental: puxa o trombone do canto direito da boca, o saxofone do canto esquerdo, o pistom do meio, o violino sai pelo nariz, belisca o pescoço e faz pizzicatos, aperta uma narina e imita surdina e, castigando a mesa, pratos, copos, talheres, é melhor que qualquer equipe de ritmistas.”
"A maioria dos compositores não sabia música e passava suas composições para os arranjadores transporem para a pauta. A nós competia vestir a música toda. Um dos poucos compositores que sabia exatamente o que queria com suas músicas era Lamartine Babo. Ele descrevia todo o arranjo, cantando a introdução, o meio e o fim, solfejava acordes e sugeria partes instrumentais. A gente só fazia escrever."
Lamartine Babo contribuiu para estabelecer a marchinha como um gênero musical brasileiro no qual, na opinião do conceituado crítico musical Lúcio Rangel, não tinha rival que o suplantasse. “O teu cabelo não nega” (que ele fez a introdução, nova letra e alterou a melodia original dos irmãos Valença), “Linda morena”, “A.E.I.O.U”, “Rasguei a minha fantasia”, “Marchinha do grande galo”, “Hino do carnaval brasileiro”, “Cantores do rádio”, “Joujoux e balangandãs”, “Isso é lá com Santo Antônio”, “Grau 10” e tantas outras foram músicas com a autoria de Lamartine Babo, em que se conjugavam uma melodia fácil, mas cativante, com letras irreverentes e inteligentes, como a de “História do Brasil”.
Quem foi que inventou o Brasil?
Foi Seu Cabral, foi Seu Cabral
No dia 21 de abril
Dois meses depois do Carnaval
Depois Ceci amou Peri e Peri beijou Ceci ao som do Guarani
Do Guarani ao guaraná surgiu a feijoada e mais tarde o Parati.
Embora fosse torcedor apaixonado do América, Lamartine Babo fez a proeza de compor marchas para todos os clubes de futebol do Rio de Janeiro, músicas que vieram a se tornar mais conhecidas do que os próprios hinos oficiais das agremiações, como é o caso de “Uma vez Flamengo, sempre Flamengo / Flamengo sempre eu hei de ser [...]” a conhecidíssima marchinha da equipe rubro-negra carioca. Mas ele não se limitou apenas a compor marchinhas, fez canções que se tornaram clássicos da música popular brasileira, como “Eu sonhei que tu estavas tão linda” (com Francisco Matoso), “No Rancho Fundo” e “Na Virada da Montanha” (com Ary Barroso) e “Serra da Boa Esperança”.
“Serra da Boa Esperança”, uma das músicas mais bonitas compostas por Lamartine Babo, tem uma história curiosa, que nem sempre é contada da forma como, efetivamente, se deu. Vamos utilizar o relato do próprio protagonista do episódio que motivou a criação da canção, o dentista Carlos Alves Neto, morador de uma pequena cidade de Minas Gerais, na época chamada Dores da Boa Esperança, atual Boa Esperança, terra natal do grande pianista brasileiro Nelson Freire.
“Tudo começou em 1934, quando a cidadezinha de Dores da Boa Esperança, com seus 5 ou 6 mil habitantes, era apenas um ponto quase imperceptível no mapa do Brasil. Localizada no Sul de Minas, distante das grandes metrópoles, Dores não oferecia muitas opções de lazer. Uma delas era ouvir rádio [...] Foi então que tive a ideia de escrever aos autores, compositores, músicos e locutores, pedindo-lhes retratos autografados para iniciar uma coleção. Redigi cerca de 100 cartas datilografadas. Grande número de artistas, de ambos os sexos, me atenderam, mas alguns, bem famosos, não se manifestaram. A estes, então, eu escrevia novamente, assinando com pseudônimo feminino, na expectativa de assim ser atendido. Adotei o nome de 'Nair Pimenta de Oliveira', que tomei emprestado a uma sobrinha de sete anos de idade que morava conosco.”
Havia artistas que mandavam duas cartas com fotos: uma endereçada a mim e outra a 'Nair'. Foi então que Lamartine Babo escreveu sua primeira carta à fã 'Nair', mas não mandou retrato. Prometeu apenas, porém, que ia manter correspondência com 'Nair', e dizia:
'Enquanto não encontro um fotógrafo hábil para caprichar no meu retrato, a síntese do feio, vou lhe enviando uma série de retratos da minh'alma e peço-lhe humildemente que você me envie as pérolas literárias da sua pena, as joias deslumbrantes que brotam da sua inteligência privilegiada. Escreva-me sempre para alegrar o meu salão azul carente de amor e ternura.'
Lamartine Babo — ou Lalá como era conhecido — não era o que se poderia considerar um padrão de beleza, com magreza e feiura que os traços dos grandes caricaturistas da época, como o seu amigo Nássara, acentuavam. Dando sequência ao depoimento do dentista Carlos Neto:
“E, como não podia deixar de ser, Lamartine pediu também que 'Nair' lhe enviasse o seu retrato. Lancei mão de outro estratagema: consegui 25 retratos de moças [...] Na carta, eu dizia que a fã 'Nair' estava entre aqueles 25 e esperava que ele, com a sua fina sensibilidade, conseguisse identificá-la [...] após um ano e quatro meses de correspondência, Lamartine mandou o prometido retrato autografado. Como as minhas cartas me tomavam muito tempo, porque eram bem elaboradas e 'Nair' tinha o cuidado de escrever sempre apenas como fã e amiga, sem se comprometer romanticamente, para o caso de um possível confronto pessoal, resolvi interromper a história [...] 'Nair' escrevia sua última carta, na qual informava que estava de casamento marcado”.
Encerrada a sua comunicação com "Nair", a sua admiradora mineira, algum tempo depois Lamartine Babo recebeu uma carta de Boa Esperança, enviada por um dentista da cidade (Carlos Neto), que o convidava para participar da festa de estreia de um conjunto musical amador que ali se formara. Lamartine ficou feliz com o convite e confirmou a presença em Boa Esperança. Poderia ser uma oportunidade para conhecer sua antiga fã que, ele supostamente imaginou, poderia ter ficado viúva, se separado do marido... Viajou esperançoso.
A chegada de Lamartine Babo a Boa Esperança é descrita no livro "Serra da Boa Esperança", de 1969, por Áurea Neto Pinto:
A cidade amanhecera festiva. Os jovens, principalmente as moças, se movimentavam com afobação. A banda de música se reunia e todos — moças, crianças e banda — se dirigiam para a entrada da cidade: iam recepcionar um personagem importante, que se dignava a deixar o Rio e vir conhecer a pequenina Boa Esperança. Lamartine Babo estava no auge do prestígio: era o artista do momento. Suas músicas faziam sucesso: acabara de compor “O teu cabelo não nega” e o Brasil inteiro a cantava. Por que essa visita? Como descobrira ele a existência de nossa terra tão distante, jogada no mapa, como um ponto perdido?
A troca de correspondência entre Lamartine e a sua admiradora "Nair" era assunto do conhecimento apenas de um grupo restrito de amigos em Boa Esperança, do qual participava o dentista Carlos Neto, que relata: "o segredo não foi revelado até a noite da festa [...] mas, no baile que se seguiu, uma das moças, menos avisada, dançando com Lamartine, desvendou o mistério.”
Lamartine Babo, que além de compositor era um grande humorista, levou a situação na brincadeira e, segundo Carlos Neto, “numa demonstração de que não se aborrecera, permaneceu vinte dias conosco. Foram vinte dias festivos, com passeios, churrascos, jantares, serões musicais e danças”.
Durante o tempo em que ficou em Boa Esperança Lamartine compôs a música “Serra da Boa Esperança”. É o próprio Carlos Neto quem conta como foi feita a canção:
“Não foi no alto da serra, que emoldura a cidade, que Lamartine compôs sua obra-prima. Isso foi feito aos poucos, em dois dias. Ora em casa, ora no jardim municipal, ora nas ruas, em qualquer lugar ele cantarolava uma ou outra frase musical da canção, modificava, corrigia, emendava, até completar a música e a letra. Como não era músico, ele solfejava a melodia e eu escrevia a partitura”.
"Serra da Boa Esperança" tornou-se uma das principais peças do cancioneiro popular do Brasil ao ser gravada, em março de 1937, por Francisco Alves, o "Rei da Voz", na época o cantor mais popular do país. Chico Alves regravou a música em 1952, três dias antes do seu falecimento em um desastre automobilístico. "Serra da Boa Esperança" é um exemplo primoroso da arte de Lamartine Babo, na qual se confluíam um inventivo melodista e um letrista admirável.
Serra da Boa Esperança, Esperança que encerra. No coração do Brasil, Um punhado de terra. No coração de quem vai, No coração de que vem, Serra da Boa Esperança, Meu último bem. Parto levando saudades, Saudades deixando, Murchas, caídas na serra, Bem perto de Deus. Oh, minha serra, Eis a hora do adeus, Vou-me embora. Deixo a luz do olhar No teu luar, Adeus! Levo na minha cantiga A imagem da serra. Sei que Jesus não castiga Um poeta que erra. Nós, os poetas, erramos Porque rimamos, também. Os nossos olhos nos olhos De alguém que não vem. Serra da Boa Esperança, Não tenhas receio. Hei de guardar tua imagem Com a graça de Deus! Oh, minha serra, Eis a hora do adeus, Vou-me embora. Deixo a luz do olhar No teu olhar. Adeus
Flávio Ramalho de Brito é engenheiro e articulista