O que alguns críticos ignoram é que Graciliano tinha consciência do valor de seus contos: antes de "Insônia", ele publicou "Dois dedos" (1945, seu primeiro livro de contos). Em 1946, publica "Histórias incompletas" (em que reúne três capítulos de "Vidas secas", quatro de "Infância" e três contos de "Dois dedos"). Em 1947, publica "Insônia", em que reúne os contos de "Dois dedos" e outros contos inéditos. "Insônia" teve uma segunda edição (revista pelo próprio Graciliano) em 1952, o que certamente indica que ele acreditava no seu livro. Embora famoso como romancista, ele não só escreveu contos, como foi jurado em concurso de contos e editou uma antologia em três volumes de contos brasileiros.
Para se ter uma idéia da ignorância da crítica em relação ao contista Graciliano, basta dizer que o próprio Antonio Candido (um cidadão indiscutivelmente exemplar e um dos melhores críticos literários de todos os tempos, respeitado em todos os cursos de Letras do país), ao referir-se a Graciliano como contista, afirma ser "Histórias incompletas" seu primeiro livro de contos! Ora: além de desconhecer "Dois dedos", "Histórias incompletas", como se esclareceu acima, não é um livro de contos. Não bastasse, diz que o livro é medíocre, sem sequer destacar algum “capítulo” (já que o livro tem bem mais capítulos de outros livros do que contos), e esses capítulos são elogiados por ele nos livros de origem. Um equívoco, realmente.
Até João Luiz Lafetá, um sério, inteligente, competente e sensível estudioso da obra de Graciliano, no artigo “O porão de Manaus”, ao fazer uma excelente síntese da obra de Graciliano, acentua a presença do modo irônico (a partir do conceito de Northrop Frye) como elemento que, num crescendo, atravessa toda obra de Graciliano. Lafetá, para exemplificar este modo irônico (em que “o herói encontra-se numa posição de absoluta inferioridade”), vale-se de quase toda obra de Graciliano, mas não faz uma referência sequer a "Insônia", em que esse procedimento é recorrente.
José Paulo Paes, em 1988, no ensaio “O pobre diabo no romance brasileiro”, elege quatro romances para discutir a questão do pobre diabo; um deles é "Angústia", de Graciliano. Apesar de o ensaio restringir-se ao estudo de romances, se lembrarmos que todos os personagens de "Insônia" podem, de algum modo, enquadrar-se neste tipo, só o desconhecimento deste livro de contos justifica que não se lhe faça uma alusão sequer.
A ignorância em relação ao contista Graciliano prossegue de tal modo que na antologia organizada por Italo Moriconi, "Os cem melhores contos brasileiros" (Editora Objetiva, 2000), o famigerado Moriconi, certamente não conhecendo "Insônia", inclui Graciliano na antologia como contista, mas publicando dois capítulos, um de romance, outro de caráter autobiográfico, em vez de publicar dois contos constantes de "Insônia", o último livro de contos de Graciliano, o único livro de Graciliano que possui edição crítica e que tem não menos de 29 edições.
Somente em 1969, "Insônia" começa a sair do limbo da crítica: neste ano, Massaud Moisés, em seu livro "A análise literária", elegeu “Um ladrão” para modelo de análise de conto. A análise primorosa de Wendel Santos (de 1975) revela a qualidade exemplar de concepção de “O relógio do hospital”. Em 1979, Antônio M. dos Santos Silva analisa o processo de antecipação em “A prisão de J. Carmo Gomes”. Em 1993, Ana Luiza Montalvão apresentou a dissertação “O contista Graciliano Ramos: a introspecção como forma de perceber e dialogar com a realidade” na UNB. Em 2005, foi apresentada a tese “Graciliano: Ramos Excluídos”, na UFPB, sobre "Insônia", em que são analisados todos os contos do livro.
Em "Insônia", há alguns contos que deveriam constar de qualquer antologia universal de conto: “Minsk”, “O relógio do hospital”, “Dois dedos”, “A prisão de J. Carmo Gomes” e “Um ladrão”. Até o famoso Álvaro Lins, que detonou o livro de contos de Graciliano, reconheceu, contraditoriamente, no mesmo texto, que “Minsk” estava entre os "capítulos" que eram pequenas obras-primas de Graciliano... Mas o livro continua sendo desprezado ou desconhecido por parte da crítica e do público-leitor de Graciliano.
Antonio Morais Carvalho
é professor e poeta