São conhecidos os fortes laços que unem Gilberto Freyre à Paraíba. Não vou, portanto, trazer novidade para o leitor. Mas isso não deve ser impedimento para revisitarmos o tema, nem que seja para, neste particular, exercitarmos um justificado orgulho de uma paraibanidade que, em outros aspectos mais recentes, tem deixado a desejar.
Creio ser justo afirmar que, de todos os estados nordestinos, a Paraíba foi o mais próximo do grande pernambucano. É possível que a proximidade geográfica tenha facilitado essa aproximação, mas lembremos, por exemplo, que Freyre não se ligou tanto aos seus vizinhos ao sul, os alagoanos, igualmente próximos do ponto de vista físico. Mas vamos aos fatos.Na rica biografia de Gilberto Freyre destaca-se um acontecimento que provavelmente marca o início de sua vida de intelectual público. Era 1916 e o futuro autor de “Casa Grande & Senzala” tinha apenas 16 anos de idade. Pois foi nessa época que ele veio à capital paraibana, ao que parece indicado por seu colégio americano do Recife, para falar sobre os novos métodos pedagógicos daquele estabelecimento, baseados nas ideias do filósofo inglês Herbert Spencer. Segundo conta Edson Nery da Fonseca, conceituado gilbertólogo, “A conferência lida por Gilberto Freyre no Cine-Teatro Pathé da Paraíba foi elogiada, em artigo publicado no jornal A União, pelo escritor então em evidência e hoje injustamente esquecido Carlos Dias Fernandes”. Aqui, Freyre hospedou-se na Rua Direita (atual Duque de Caxias), em sobrado pertencente à família Lemos. Ele próprio é que conta em seu diário “Tempo morto e outros tempos” (Editora José Olympio, 1975): “Toda manhã saía de toalha no ombro, com o Oswaldo Lemos, pela rua principal da cidade, a fim de tomar banho num banheiro semipúblico. De toalha no ombro e de chinelos. É um lugar pitoresco a Paraíba”. E bota pitoresco nisso.
Em 1924 Freyre retornaria à Paraíba para nova conferência, dessa vez no Teatro Santa Rosa. Note-se que ainda não era o célebre autor de “Casa Grande & Senzala”, que só seria publicado em 1933. Mas já era, sem dúvida, um intelectual de destaque, pois do contrário não teria sido convidado para falar aos paraibanos. E aqui cabe uma observação minha: imagino que esse precoce convite muito deve ter tocado o jovem e já vaidoso coração freyriano, contribuindo para estreitar seus laços afetivos com a terra tabajara.
Mas foi em 1941 que se firmou o vínculo mais definitivo do recifense com a Paraíba. Nesse ano ele casou-se com a paraibana Maria Magdalena Guedes Pereira, seu grande amor de toda a vida e seu grande apoio na construção de sua obra, pois ela foi sua eficiente secretária e companheira nas inúmeras viagens que ele fez pelo mundo. Como seria natural, Magdalena, sempre em contato com as raízes familiares, aproximou ainda mais o marido da gente e das coisas de sua terra, que ele visitou inúmeras vezes, em caráter oficial ou não. E com o nascimento dos filhos do casal consolidou-se para sempre a paraibanidade da família formada pelo Senhor de Apipucos.
Agora os amigos. Como se sabe, foram muitos os de origem paraibana. E para isso certamente contribuiu o fato de que, até começos da segunda metade do século passado, os paraibanos de certa condição iam estudar em Recife, cuja Faculdade de Direito era então um célebre centro formador de bacharéis. Dá para se entender que, chegados à capital pernambucana, onde Gilberto Freyre pontificava desde os anos 1920, nossos conterrâneos fossem por ele atraídos do ponto de vista intelectual, principalmente depois de 1933, quando veio a público “Casa Grande & Senzala”, monumento cultural do Brasil.
Freyre foi amigo de José Américo de Almeida. Conheceram-se em 1924, através de José Lins do Rego. Em seu já citado diário, fez a seguinte anotação sobre a nova amizade: “J.L. do R. me faz conhecer o seu grande triunfo paraibano: é J. A. de A. Um triunfo, na verdade. Não se confunde com a mediocridade intelectual que aqui, como em Pernambuco, tenho conhecido. Destaca-se do próprio D. D. F. Muito míope, feioso, um tanto desajeitado nos modos. Mas dominando esses traços negativos, uma força de personalidade que se faz sentir de maneira irresistível. Não se faz sentir pela ênfase nem dos gestos nem de palavras. É uma força suave. Suave porém marcada por energia interior capaz de se tornar, sendo preciso, exterior. ... É um escritor. Euclidiano, por vezes, em sua frase, a forte personalidade não permite que nele o estilo deixe de ser o homem.” Veja só que perspicácia do pernambucano.
Amigos também foram os paraibanos Olívio Montenegro e Odilon Nestor, entre outros. Mas ninguém na Paraíba – e talvez fora dela – superou, como amigos íntimos de Freyre, José Lins do Rego e Odilon Ribeiro Coutinho. Estes dois só foram talvez igualados, no coração freyriano, pelo recifense Edson Nery da Fonseca. Páginas e páginas já foram escritas sobre essas duas imensas amizades paraibanas de Gilberto Freyre, razão por que considero desnecessário estender-me aqui sobre o assunto, limitando-me apenas a fazer dois registros: Zé Lins talvez não tivesse sido o escritor que foi sem a benfazeja influência intelectual e literária do pernambucano, e Odilon terminou sendo um dos maiores gilbertólogos do país, como prova seu precioso livro “Gilberto Freyre ou O Ideário Brasileiro” (Topbooks, 2005).
Agora concluo com outra considerada amizade paraibana de Gilberto Freyre: Juarez da Gama Batista. Este, não foi tão próximo como José Américo, Zé Lins e Odilon Coutinho, mas, sem dúvida, não esteve entre os menos amigos do autor de “Nordeste”. Prova isto o fato de ter sido Juarez Batista o escolhido para saudar o pernambucano na solenidade em que a Universidade Federal da Paraíba outorgou-lhe o título de Professor “Honoris Causa”, em 6 de setembro de 1973, no auditório da Reitoria, ocasião em que a UFPB comemorou também os 40 anos de publicação de “Casa Grande & Senzala”. Encerrando seu belo discurso apologético, Juarez exortou a plateia numerosa: “... reparai no charme discreto de Gilberto Freyre”. Um belo e literário final.
Como se vê, foram muitos e foram fortes os vínculos que uniram e unem a Paraíba a Gilberto Freyre. Esperemos que ela saiba honrá-lo, assim como a honrou aquele que, nas palavras do historiador Clênio Sierra de Alcântara, “segue como um farol – talvez o mais reluzente farol – iluminando o horizonte das vagas explicadoras da nacionalidade brasileira”.