As palavras eram cheias de sinceridades e havia nelas uma franqueza incomum. Faziam-na lépida, ao mesmo tempo ansiosa, num ato de distrofia emocional prazerosa, quando, já prontinhas e registradas, eram conduzidas pelo irmão mais novo com destino ao seu amor. Carinho com erros gramaticais jamais escondeu as propriedades da paixão, muito menos camuflou a legitimidade de seus encantos. Assim penso eu.
A casa dela se situava no topo de uma pequena ladeira. Os gritos estridentes das cigarras cortavam o silêncio num ato comum de quem anunciava a noite. Nas frestas das árvores, via-se uma espécie de renda, mas, na verdade, era um painel natural feito de luzes de energia elétrica, imitando um redemoinho de vaga-lumes piscando em grupos. As pracinhas se deixavam mostrar pelas réstias das árvores, tal qual um corpo desnudo. Na calçada, duas cadeiras, encostadas num cantinho de parede, abrigavam os dois. Eram amores entregando-se aos vislumbres da parceria instantânea, com todas as vontades mergulhantes nas suas fantasias a que tinham direito.
E continuou contando que a namorada, num certo dia, ao notar a sua sonolência, provocada pela fadiga de um dia exaustivo de trabalho, olhou-o sorrateiramente e, com voz meio caipira, esboçou aos ouvidos de seu escritor enamorado:
“Meu filho, durma um pouquinho no meu ombro que eu fico aqui lhe pastorando”.
Certa vez, ouvi outra expressão simples e um pouco mais surpreendente que essa. Uma senhora abordou um vendedor de feira de rua, a chamada feira livre, a fim de saber se ele tinha batatas grandes. Imediatamente, o velhinho lhe respondeu que não:
As que eu tenho aqui, dona, não são grandes, são graúdas! Grandes só os poderes de Deus!!!” Mais na frente, um senhor vendia uma fruta cuja textura se assemelhava à pinha. As duas estavam juntas no banco da feira. Perguntei ao feirante qual era a mais doce das duas. Rapidamente, respondeu-me:
“As duas, doutô, as duas têm a mesma doçura!”
E assim vão surgindo as inusitadas reações, como a da namorada do escritor, igual à do feirante, tal qual a do frentista de um posto de combustível que, ao se referir à verificação do nível de óleo do meu carro, afirmou que seria melhor que o fizesse no dia seguinte, pela manhã. E explicou o porquê:
“Melhor verificar pela manhã cedinho. É nessa hora que o óleo está em repouso”.
Mas foi a pessoa que faz manutenção em fogões a gás, que mais me chamou a atenção. Aparentando quase oitenta anos de idade, magro, moreno, empunhando uma maleta velha de ferro onde guardava as suas ferramentas, abordou-me do portão:
Doutô, o fogão do senhor está com alguma boca entupida? A gente faz o serviço.
Lembrei-me de que precisava dos seus préstimos e aceitei. Depois do serviço concluído, acionou o acendedor automático do fogão e as seis bocas foram acesas. Em seguida, caí no descuido de lhe perguntar se o serviço havia mesmo ficado bom. Ele, educadamente, olhou para mim e respondeu-me com voz pausada em forma de pergunta:
““O Senhor não está vendo, doutô, a expressão das chamas?!”
Baixei a cabeça e, nesse momento, esbarrei com os olhos nos seus pés graúdos, quase gigantescos, metidos dentro de um par de sandálias havaianas, parte do pé dentro da sandália, parte fora da borracha já carcomida pelo tempo.
Não demorei a entender que seu universo era feito de chispas que chamamos reluzentes, ilustrando os termos simples, que tanto nos fazem desapercebidos e distantes. São inesperados “nadas”, sobre os quais há tanta profundidade, no dizer simplório do grande Manoel de Barros.
Se isto fosse comum, sentiríamos com mais frequência a incensação de muitas bocas, naturalmente “desentupidas”, deixando sair delas frequentes reflexões além do esperado. Teríamos somente as chamas inofensivas da verve emanada das palavras, formando um inesperado instante, no dizer que nos parece ser somente trivialidade.
Lamentamos quanto, ao risco da completa extinção dessas relações enrustidas, (mas súbitas), para dar lugar às citações fabricadas pelo óbvio, enlatadas, amorfas, muito longe das expressões cristalinas que enchem as palavras com um substrato de chamas que acendem e iluminam tantas bocas.
Saulo Mendonça é escritor, poeta e haikaista