– Papai, o que é idiossincrasia?
– “Índio” o quê?
– Não é “índio”, é “idio”.
O pai hesita, pensa um pouco.
– Onde você viu essa palavra?
– Não interessa. Quero saber o que ela quer dizer.
– Aposto que foi na internet, em um desses saites suspeitos. Você está me escondendo alguma coisa...
O guri se impacienta:
– Não estou escondendo nada. Quero saber o que... “idiossincrasia” significa. Se o senhor não sabe, não precisa se envergonhar.
– Claro que sei, ora! Mas só digo se você primeiro me disser onde leu ou ouviu isso.
Silêncio de ambos os lados. O menino explica:
– Está bem, foi na internet. Mas não nos saites que a sua mente suja está imaginando. A professora mandou fazer uma pesquisa sobre as pessoas que reagem ao bullying. Num dos textos tinha essa palavra.
O pai fica meio desconcertado, pois esperava que o menino lhe desse um motivo para não precisar responder. Se ao menos a palavra começasse por “índio”, ele podia inventar alguma coisa relacionada a primitivismo, ecologia, vida selvagem. Mas era “idio” mesmo.
O pior é que o garoto parecia sincero. Não devia ter visto o vocábulo em nenhum saite pornográfico ou semelhante. Tratou de ganhar tempo.
– Em que contexto ela está usada? Você sabe que o sentido das palavras muda de acordo com a situação.
– Contexto?!... – o menino resmunga. – Está bem, vou ver no saite.
Desloca-se até a mesinha onde está o computador. Não leva muito tempo, pois mantém a máquina ligada o dia todo para eventualidades como essa e para coisas importantes como receber recados dos amigos no MSN. O menino vive entre a casa e o computador, seu mundo paralelo. Aproveita para responder uma mensagem antes de localizar o trecho onde se encontra a palavra obscura. Recita-o em voz alta: “A forma de reagir ao bullying é proporcional à idiossincrasia e à condição social da vítima.”
O velho ouve, pigarreia, pede que o filho leia a passagem de novo. Enquanto isso vasculha os escaninhos da memória em busca de uma pista. Em seu tempo de estudante não se falava em bullying, mas havia práticas que lembravam essa forma de intimidação. As gangues da “juventude transviada” costumavam bater em indivíduos indefesos que, dependendo do temperamento, eram capazes de reações violentíssimas. Resolveu arriscar:
– “Idiossincrasia” é temperamento, modo de ser. Satisfeito?!
No dia seguinte, ao voltar da escola, o garoto cumprimenta o pai:
– O senhor estava certo! “Idiossincrasia” é aquilo mesmo.
O velho ri, orgulhoso. Ainda tem o rosto iluminado, quando ouve o filho dizer:
– Por sinal, a professora passou hoje uma pesquisa sobre a evolução do pensamento grego. – Do pensamento grego?!
– É. Até já comecei a ler alguma coisa sobre isso na internet. – Faz uma pausa e:
– Pai... o que é enteléquia?
Chico Viana é doutor em teoria literária, professor e escritor