Foi pensando em sua performance ímpar, no seu jeito postural de trabalhar e nas conhecidas histórias de seus confrontos com o meu tempo, em convivência com seus mais diversos e diferentes pacientes, que peguei carona para a cidade onde nasci para me lembrar do Dr. Genildo Lins de Albuquerque, meu primeiro dentista.
Foi ele o desbravador dos meus primeiros medos. A broca, a que pagávamos os pecados jamais cometidos, era um terror, um fantasma. E era a responsável pelo suor gelado que espargia pelas mãos e pelo rosto, não tendo direito nem ao menos, de benzer-se antes de sentar na bendita cadeira do dentista.
Guardo até hoje na cabeça, o som enjoado do motorzinho, um invasor indesejado aos meus ouvidos. Naquela época, nem para atenuar os nossos arrepios, ouvíamos algo acalentador. Ao invés de diminuir a nossa apreensão, ouvia-se de sua boca, um “abra a boca” como se fosse uma severa e decisiva voz de prisão.
Dr. Genildo era também conhecido pelas obturações perfeitas que fazia. Ainda hoje, andam em muitas bocas daquela época. Naquele tempo, nos seus dedos, havia marcas de dentes de todas as idades. Também pudera! - os meninos não gostavam muito daquela ideia de "limpeza dos dentes" com aquele líquido cor de tinta violeta, escorrendo pelas beiradas da boca. Mordiam quase por instinto os seus dedos indefesos. Mas quando era para extrair um dente, ele era "incisivo", e fazia-o "dente por dente".
Cresci ouvindo o seu nome repetidamente: Dr. Genildo. Não soava muito bem aos ouvidos da gente! E - é claro! - sem culpa nenhuma do profissional da saúde que era, mas pelo receio de suas ferramentas lancinantes que pareciam corrosivas, perversas. A sua austeridade (muito rija), às vezes, confundia-se com a falta de paciência. Também – né? - aturar uma repelência generalizada não era coisa para os nervos aguentarem assim tão facilmente.
Em 2015, no Restaurante "O Tererê", na Praia do Cabo Branco, em João Pessoa, quando eu lançava dois livros, lá estava o Dr. Genildo. Havia chegado numa comitiva de pessoas amigas da minha terra, capitaneada pela sobrinha dele, a amiga Carmen Cinira e mais outros conterrâneos. De longe, vi a minha infância escorrendo no seu semblante já sombrio, de postura ilibada, compassivo. Vi-me também, por instantes, sentado em sua cadeira elétrica... Isto mesmo, muito elétrica, agora... acendendo a luz da lembrança: do pedal de comando, da broca, do refletor focando os molares, obturações, prevenção de cáries, das seringas, das agulhas, pinças, do trio (cobre, níquel e titânio) e outras “contusões” odontológicas. Mas, com a dádiva de estar aqui, reconhecendo que, se não fossem aqueles momentos de medo, não poderia fazer a vida valer a pena, pelo fato de me permitir povoar-me de histórias que invadem os matizes de nossas retrospectivas.
Livro na mão, página já aberta, tal qual eu, naquele tempo, boquiaberto, tenso para o autógrafo de sua broca nos meus dentes. Eu agora sem medo, naquele dia de festa e de poesia, peguei a caneta e autografei os exemplares, escrevendo-lhe abertamente: "Ao Mestre Genildo, patrimônio humano de Alagoa Grande, com a minha gratidão por esses anos mastigados, sofridos e bem vividos”.
Afinal de contas, apesar do medo traumático de outrora, quando ele trabalhava, nós todos é que ficávamos literalmente de boca aberta. Mas, a vida, dando reviravolta, fez com que ele abrisse a boca naquele instante, mas para agradecer - com sorriso obturado pelos anos - a poesia que lhe havia feito e o abraço que lhe havia dado.
Saulo Mendonça é escritor, poeta e haikaista