“O tirano morre e seu reinado termina. O mártir morre e seu reinado começa.” Søren Kierkegaard O romance latino-americano nasc...

O déspota nos romances hispano-americanos

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“O tirano morre e seu reinado termina.
O mártir morre e seu reinado começa.”
Søren Kierkegaard

O romance latino-americano nasce comprometido com a realidade social. Nessa tendência, surgem narrativas com uma releitura da história, que se aproximam dela no preenchimento de vazios, mas, por sua vez, dela se diferenciam ao incluir, em sua arte, lacunas proibidas pela História Oficial. E a insigne professora hispanista, Bella Jozef sintetiza:


“A arte narrativa confere uma voz ao que a ‘história’ negou, silenciou ou perseguiu. Com isso se estabelece uma crítica da arte e da História dentro da própria obra.”

(Jozef, 1990:33)

Numa reunião de verdades e mentiras a narrativa da América Latina abordará temas variados e entre eles é relevante o da figura do tirano, que retrata os países que a constituem por ser ela um lugar em que desaparecem todas as leis comuns e um só quer comandar.

O despotismo proporciona o despertar do império do mito do cruel, acelera os velhos sonhos de conquistas, fantasmas de crueldade, arquétipos do homem, figuras apocalípticas (demoníacas), desperta os interesses dos antropólogos, dos sonhos e da imaginação dos escritores.

Contudo, captar a personalidade excêntrica, exagerada, extraordinária da figura do ditador tirano na arte da ficção torna-se difícil para o escritor, não só pela complexidade da personalidade como também pelos obstáculos da historiografia com os quais têm de enfrentar.

Desde os governos coloniais, o autoritarismo dos espanhóis e portugueses reina na América Latina, e uma série de nomes de “líderes” políticos, geralmente militares, são lembrados pelo seu governo ditatorial, tais como, Perón, Getúlio Vargas, os Militares da Ditadura de 60 e 70 em Brasil, Pinochet, Montesinos, Fujimori, Fidel Castro, Trujillo e outros que, egoisticamente, procuraram (ou procuram) controlar o destino do país e fazer a história a partir deles.

A identidade no procedimento dos ditadores, tomando como ponto de partida a intertextualidade, proporciona observar a evolução mítica do tirano. Relembramos a metalinguagem, já consagrada nos meios acadêmicos, de Júlia Kristeva: “todo texto é absorção e transformação de outro texto”, ou de Derrida: “todo texto é um texto de outro texto”.

Sendo o mito uma forma de comunicação humana, ele é um produto de linguagem que, como esta, só adquire sentido dentro de um sistema. Pois, ainda que passe de um sistema para o outro, sua mudança de significação é superficial, porque a relação básica permanece.

A figura de um tirano, como a de Nero, na Roma Antiga, que, cruelmente, iluminou seu palácio com tocha humana, pode ser transportada a uma época contemporânea considerada “científica”.

Os estudos de Freud sobre o inconsciente e suas relações com o mito e os sonhos, os estudos de Jung sobre os arquétipos e os de Northrop Frye sobre a simbologia dos mitos favoreceram os estudos míticos modernos, possibilitando o seu desenvolvimento na contemporaneidade.

Portanto, por ser representativo o palco de regimes déspotas, surgem obras que refletem um ambiente de crueldade. Como exemplos, citamos os romances "El Señor Presidente", de Miguel Ángel Asturias, "El Otoño del Patriarca", de García Márquez, "La Muerte de Artenio Cruz", de Carlos Fuentes, "Yo, el Supremo", de Augusto Roa Bastos e "La Fiesta del Chivo", de Mario Vargas Llosa.

Sendo a América Latina um lugar propício às caídas das leis, facilita o aparecimento de governos não democráticos, obtidos à força, por decretos, por aclamação pública ou por astúcia.

O ditador emerge do ambiente popular e se coloca contra os homens poderosos, “protegendo” o povo para que ele não sofra violências. Em geral, são bons demagogos e atraem a confiança por meio de calúnias aos homens de mais poder.

O domínio do ditador se torna absoluto e pessoal, pois tudo depende de sua vontade (manda por decretos). Ele se considera imortal e muitos deles têm fins trágicos. Dessa característica do ditador lembramos, para citar alguns, o fim de Hitler (suicidou-se com sua amante, Eva Braun), de Getúlio Vargas (dizem, que se suicidou), de Trujillo (foi assassinado por antigos colaboradores) e de Nero (mandou que um liberto o matasse).

O romance "Tirano Banderas" dá início, podemos dizer, ao tema do tirano latino-americano caribenho de uma maneira caricaturesca. Ele é produto da arte ficcional de um escritor espanhol, Ramón de Valle-Inclán. Nessa obra, o autor põe em destaque uma das características que se repetirá na figura mítica do tirano: a gravidade das feições e a seriedade na maneira de trajar ao se apresentar em público:


El Generalito acababa de llegar con algunos batallones de indios, después de haber fusilado a los insurrectos de Zamalpoa: inmóvil y taciturno, agaritado de perfil en una remota ventana, atento al relevo de guardias en la campa barcina del convento, parece una calavera con antiparras negras y corbatín de clérigo (VALLE-INCLÁN, 1972:15).

Seguindo esse tema, Miguel Ángel Asturias, escritor guatemalteco, nos apresenta a figura do Presidente, destacando o seu traje e sua preocupação em impressionar:


El Presidente se paseaba a lo largo de su despacho, corto de pasos, el sombrero en la coronilla traído hacia adelante, el cuello de la americana levantado sobre una venda que le cogía la nuca y los botones del chaleco sin abrochar. Traje negro, sombrero negro, botines negros. (...) Se sobó el bigote con la punta de los dedos transparentes, frágiles color de madera de carrizo, y continuó cambiando de tono. (ASTURIAS, 1972:238-9).

O cuidado com o aspecto pessoal nos mostra Vargas Llosa na narração de uma manhã do Benfeitor preparando-se para sair para o seu escritório:


[... ] Cuando estuvo peinado y hubo retocado los extremos del bigotillo semimosca que llevaba hacía veinte años, se talqueó la cara con prolijidad, hasta disimular bajo una delicadísima nube blanquecina aquella morenez de sus maternos ascendientes, los negros haitianos que, siempre había despreciado en las peles ajenas y en la suya propia. Estuvo vestido, con chaqueta y corbata, a las cinco menos seis minutos. Lo comprobó con satisfacción: nunca se pasaba de la hora. Era una de sus supersticiones; si no entraba a su despacho a las cinco en punto, algo malo ocurriría en el día. Se acercó a la ventana. Seguía oscuro, como si fuera media noche. Pero divisó menos estrellas que una hora antes. Lucían acobardadas. Estaba por asomar el día y pronto se correrían. Cogió un bastón y fue hacia la puerta. Apenas la abrió, oyó los tacos de los dos ayudantes militares:
— Buenos días, Excelencia.
— Buenos días, Excelencia.
Les contestó con una inclinación de cabeza. De un vistazo, supo que estaban correctamente uniformizados. No admitía la dejadez, el desorden, en ningún oficial o raso de las Fuerzas Armadas, pero entre los ayudantes, el cuerpo encargado de su custodia, un botón caído, una mancha o arruga en el pantalón o guerrera, un quepis mal encajado, eran faltas gravísimas, que se castigaban con varios días de rigor y, a veces, expulsión y retorno a los batallones regulares (VARGAS LLOSA, 2000:38).

A figura do ditador sempre foi ou odiada ou querida. Seu traço de infeliz é definido desde Platão, na República, como resultante de fugir da lei e levar os excessos a prazeres falsos.

A solidão é sempre a companheira dos tiranos. Ela decorre do poder e do medo, que os isolam. Na obra de García Márquez quase ninguém via o Patriarca e na de Vargas Llosa, o relato nos mostra que o Generalíssimo não convivia com a família. Carlos Fuentes em "La Muerte de Artenio Cruz" apresenta a solidão do Capitão, em uma vida de amor e morte, e Garcia Márquez, em "El Otoño del Patiarca", na caricatura de um ditador extremamente velho, que passeava pelos imensos e abandonados salões de um palácio cheios de gaiolas, galináceos e vacas. O exagero da idade e a incerteza dos anos, 107 ou 132 anos, outorga ao tema do poder uma visão mítica. Vargas Llosa delineia a solidão do ditador, num sono atormentado, cheio de maus presságios, onde se sentiu prisioneiro em uma teia de aranha e quase devorado por um bicho peludo cheio de olhos.

Sobre "La Fiesta del Chivo" (A Festa do Bode) Vargas Llosa disse, em uma entrevista com Sanjuana Martínez (2/5/2001), que nessa narrativa falou sobre todos os ditadores latino-americanos, e que alguns estão mortos e outros ainda vivos, “desgraciadamente”, segundo ele. Nessa obra, Vargas Llosa destaca Trujillo como um tirano sanguinário. Ele o descreve como um homem, convencido de que está encarregado de uma sublime missão, que lhe dá certa grandeza de pai e deus para o povo, um ar de benevolente e protetor, posição que se contrasta com a degradação de sua família. O caráter machista, bem latino-americano, ascende a níveis psicológicos. O assédio sexual é hiperbólico e esperpêntico no Patriarca, pois dá importância, principalmente aos mais humildes, entregar a Trujillo as filhas para serem suas amantes. Ele era o macho e para aumentar o seu potencial tomava porções dos curandeiros para os seus excessos. Mas Vargas Llosa dá um toque de erotismo, um ar poético Seu ditador tem ares de Dom Juan. Ele procura ser gentil com as mulheres. Preparava o ambiente com flores, música, cheiros na Casa de Caoba, quando levava as adolescentes. O prazer que busca é um fantasma, ele está relacionado com a solidão.

Na figura do tirano há certa obsessão pela mãe e carência da figura paterna. Nero mata a mãe. "O Patriarca", de García Márquez, gosta de saber que o povo santifica sua mãe, Bendición Alvorada, mas proporciona a morte da esposa e do filho. Trujillo gostava de que fosse elogiada sua mãe. Toda tarde ia visitá-la. Apoiando-nos em Freud, julgamos que, por traz dessa obsessão há um sentimento de culpa que procede do Complexo de Édipo, sendo esse para o psicanalista, a fonte onde a Humanidade extrai sua consciência.

Aristóteles, em "A Política", define o tirano. Podemos observar que suas ponderações estão de acordo com o comportamento social e psíquico do déspota retratado nos romances latino-americanos, e claramente encontrado no romance polifônico de Vargas Llosa, "La Fiesta del Chivo", em que cada capítulo põe em destaque um personagem que proporcionará ao leitor ir delineando mentalmente o arquétipo do tirano. Citamos algumas definições, desse tipo humano, elaboradas por Aristóteles que se encontram no comportamento de Trujillo. O tirano:


a) Eleva uma pessoa publicamente e, depois, derruba-a para eleger outra. b) Não aprecia os homens graves e livres porque rivalizam com ele no prestígio que só a ele deve pertencer. c) Prefere, em sua intimidade, estrangeiros porque não têm pretensões de seu poder. d) Avilta os súditos porque aquele que possui um caráter baixo e pusilânime não tem coragem de conspirar contra ele. e) Estabelece a desconfiança dos cidadãos entre si, porque só onde há confiança recíproca a tirania é derrubada. Os homens que o tirano deve temer são dos que não temem sacrificar a própria vida. f) Impossibilita ações para não ser combatido, pois procura garantir a sua força. g) Procura interessar-se pelo bem público e não fazer despesas e liberalidades que irritem a multidão.
h) Presta conta daquilo que recebe e do que gasta para parecer mais guardador do tesouro do povo que seu tirano. i) Guarda os tributos, medida econômica, aplicando-o, se possível, em despesas de guerra. j) Deve, em público, ter uma aparência grave, mas não severa para não despertar o terror. k) Deve-se abster de ofender aos súditos, dominar-se aparentando calma. l) Deve evitar os olhares do povo para a sua orgia. m) Procura adornar a cidade e honrar a religião. n) Eleva muitos cidadãos ao mesmo tempo porque um vigiará o outro.

No romance "La Fiesta del Chivo", Mário Vargas Llosa, em uma voz feminina, a de Urania Cabral, conduz a narrativa, impregnada de verdades, entremeada de mentiras, do contexto social e político da República Dominicana, durante a ditadura de Rafael Leonidas Trujillo y Molina.

A narração se estende por três décadas de 1931 - ascensão ao poder de Trujillo -, até a sua morte em 1961, período em que este reinou na República Dominicana de uma maneira absoluta.

No romance cada voz exprime uma visão do mundo do ditador de maneira específica, dando ao leitor dados para o conhecimento do seu caráter e das circunstâncias sociais e políticas que o envolvem. Não há o privilégio de uma voz. Mas é Urania Cabral, uma quarentona, que regressa à ilha, depois do assassinato do ditador, em busca de explicação e continuidade quem segura o fio condutor na reelaboração da figura mítica do tirano. Ela, aos 14 anos fugiu para os Estados Unidos, para Nova York, onde se tornou uma advogada de sucesso, porém emocionalmente frustrada, pois ao sair do país levou consigo um segredo de fundo sexual que revela no desfecho. Como é ela quem abre e fecha o relato, ele se torna circular. Na polifonia das vozes Vargas Llosa reforça a qualidade de autêntico narrador de acontecimentos, selecionados com arte. Nos fatos históricos e sociais, salpica a realidade objetiva de imaginação e poesia. E, apoiando-nos nas primorosas narrativas aqui apresentadas, reafirmamos que os déspotas, nos romances e na vida, além da solidão permanente, reflexo do medo, do roubo que faz ao outro de sua liberdade, são levados a um final trágico.




Ester Abreu Vieira de Oliveira é professora, escritora, doutoura em letras neolatinas, pós-doutoura em filologia espanhola, membro do IHGES e presidente da academia de letras espirito-santense


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  1. Perfeito texto ..Ester de Oliveira..em que traça perfis de ditadores e suas manipulações!!!
    Parabéns👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻👏🏻
    Paulo Roberto Rocha

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  2. A Literatura cumpre seu papel de analista do tempo, observa, registra, recria. O texto da professora Ester retira de obras literárias as referências emblemáticas, para reunir os elementos mais patéticos de seus personagens principais. Na hora lembrei de "A festa do bode", de Mário Vargas Llosa, mencionada no artigo, que me impressionou de maneira marcante. Como sempre faço, fui pesquisar sobre Trujillo e constatei o quanto havia de realidade na obra. Sem a Literatura, a vida seria uma miséria.

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