Para mim, a decadência do tradicional Ponto central da antiga urbe começou, do ponto de vista urbanístico, com a implantação do calçadão da Duque de Caxias, no trecho que vai do antigo Cinema Rex até a Assembleia Legislativa, hoje um triste e desolado corredor de ambulantes e desocupados, retrato fiel da decadência urbana e social do velho Centro da cidade. Esse equivocado calçadão matou comercialmente não só o referido trecho da Duque de Caxias, o mais nobre que havia, pois ligava o Ponto de Cem Réis à Praça João Pessoa, como também matou o próprio Viaduto Damásio Franca, fechando a alça procedente da Guedes Pereira, uma das razões arquitetônicas da grande obra do prefeito cujo nome a batizou.
Ora, sem mais acesso automobilístico ao principal setor da Duque de Caxias, as classes média e alta da Capital praticamente abandonaram a região central da cidade, para prestigiar o nascente comércio da Epitácio Pessoa e das praias, notadamente a partir da chegada dos primeiros centros comerciais, os shoppings maiores e menores que viriam monopolizar os consumidores mais aquinhoados de uma Capital que começava a crescer, em todos os sentidos, na direção do Atlântico, para nunca mais voltar aos antigos logradouros e ruas dos começos da aldeia. Não digo que o Ponto de Cem Réis tivesse resistido, mesmo sem a citada reforma do Viaduto, à atração irresistível da orla, mas que o fechamento da Duque de Caxias e da citada alça contribuíram muito para o ocaso do Centro, não tenho dúvida. E aí, para fechar o ciclo decadencial, veio a mais recente reforma da Praça Vidal de Negreiros, transformando-a num deserto de concreto, árido lugar-nenhum onde ninguém mais vai, onde ninguém se encontra, triste e equivocado espaço urbano ocupado diuturnamente por desocupados de todas as espécies. Um verdadeiro e feio monumento ao nada.
Sem nenhum saudosismo, podemos todos perguntar: O que já foi o Ponto de Cem Réis para a Capital?. O próprio Gonzaga Rodrigues nos conta em seu livro memorialista. Nos anos 1950 e 1960 aquele espaço quase mitológico para os paraibanos menos jovens era frequentado diariamente pelo poder e pela inteligência. Seus cafés fervilhantes de vida eram o ponto de encontro de todas as tribos relevantes da urbe participante: jornalistas, escritores, políticos, estudantes, artistas, professores, sem exclusão dos anônimos, que para ali iam ver e assistir ao desempenho dos atores principais da cena local. Então era comum a presença de expoentes como José Lins do Rego, Juracy Magalhães, Assis Chateaubriand, Juarez Távora e até o reservado José Américo, que às vezes saía do Palácio e ia pessoalmente auscultar o coração de sua gente, para espanto de tantos. Não raro, a História acontecia diante dos olhos de todos. Ninguém podia ser importante na Paraíba sem frequentar, mesmo que esporadicamente, o Ponto de Cem Réis. Segundo Gonzaga, Carlos Lacerda vez por outra dava as caras por lá. Vejam só o que era a Paraíba há meio século.
Tudo acontecia e repercutia ali. Se o Café Alvear não comentasse era porque o fato não tinha acontecido. Isso desde a fofoca social mais trivial até o acontecimento político da maior relevância. Os jornais funcionavam nas imediações, os principais bancos, as lojas mais conhecidas. Por ali transitavam todos, do grande comerciante ao barnabé mais modesto, numa quase confraternização permanente, onde até o cidadão mais simples tinha o seu lugar no democrático balcão do acessível cafezinho.
Um verdadeiro espaço de cidadania. Isto é o que efetivamente era o Ponto de Cem Réis. Para os paraibanos era como a ágora para os gregos antigos: lugar de participação cívica, nos grandes momentos mas também na cotidianidade.
E o que temos hoje naquele espaço mítico e esvaziado? Um retrato daquilo que nos tornamos nas últimas décadas: uma gente sem rumo, dispersa, que não mais se encontra civicamente, que não se reconhece, que não mais participa da vida da urbe, salvo nos seus aspectos mais irrelevantes, uma gente sem líderes autênticos e representativos, enfim, uma gente que, comparativamente e enquanto comunidade, perdeu importância em todos os sentidos.
A maioria das cidades europeias tem a sua praça principal preservada, onde tudo acontece há séculos, a despeito da expansão urbana de cada lugar. Quem poderia imaginar Florença com seu coração pulsando noutro lugar que não na Piazza della Signoria? Aqui, perdemos a nossa praça emblemática. Quando passo atualmente pelo Ponto de Cem Réis a sensação que tenho é de que ali explodiu alguma bomba atômica invisível e silenciosa, cuja radioatividade mortífera condenou para sempre o lugar a um vazio triste, tal como, imagino, seja Chernobil hoje em dia.
As novas gerações nada lamentam porque nada sabem sobre o que foi aquilo. Para a moçada cheia de futuro, o passado é apenas uma roupa velha que não serve mais, como diria o poeta Belchior. Contentam-se em passear nos shoppings, ignorantes de tudo (ou quase) e achando que a vida toda (ou quase) se resume nisso.
É triste. Nos prédios, a aldeia cresceu para cima, por um lado. Por outro, é possível que tenha crescido feito rabo de cavalo: pra baixo.
Mas estarei sendo pessimista demais?
Francisco Gil Messias é cronista e ex-procurador-geral da UFPB