Um catador de papel era um assíduo transeunte de minha rua. Além do seu esforçado mourejar diário, conduzia o hobby de caminhar cantando e cantar caminhando. Esgrimindo, fazia vibrar o som da voz que entoava as mais variadas melodias do cancioneiro popular.
Com a sua carroça tecia o seu itinerário seguindo e apanhando pedaços de sua remuneração encontrados no meio do caminho. Nada muito estranho. No entanto, foi olhando para aquele trabalhador de rua - de sol a pino e mesmo assim cantando - que reli um certo capítulo da história, aquele que um dia me deu lições sobre a aurora. Logo recapitulei: viver amanhecendo é amanhecer vivendo.
Colocar isso para dentro de si é o inverso dos que se debruçam sobre desejos cifrados, com vícios de ânsias alucinantes de se verem “ricos”. Viver já nos vale uma fortuna! Esses, além de caminharem desapercebidos, absorvem a harmonia de seu próprio percurso, irrompendo o mundo dentro deles, como esse catador cuja voz rouca e afinada todos os dias põe na rua seus suores e vai seguindo, e assim vai passando e vai vivendo.
A vida, por sua vez, proporciona o seu universo amanhecente. Talvez por isto, a espiritualidade de Kardec diz que os inóspitos de grandeza são infinitamente estéreis. Infelizmente, ínfimos dentro de si. Só não podemos pensar que são dispensáveis ao convívio da humanidade. Fugiríamos da convivência com os seres desiguais.
“Se não fosse o amigo violão, morreria de saudade e de dor”. Assim andava o catador encurtando o seu caminho, na trilha estridente dos roncos dos automóveis e do seu trabalho “espinhosamente musical”. Será que sabia que ali era apenas a sua passagem? Sei que decifrava facilmente o seu espírito e o código de sua predestinação kármica, regendo o seu próprio refrão. Cumprindo!
Fiquei pensando numa certa funcionária que conheci numa repartição pública. Há tempo, o mau humor tomava conta dela e se manifestava reações das mais esquisitas! Até o cumprimento, o tradicional “bom dia”, representava a mais injusta cobrança que lhe faziam. A cara amarrada numa tamanha rigidez não a deixava reagir aos cumprimentos. Mas a razão era muito simples: ela não tinha nenhum conhecimento das sensações capazes de gerar o zen da aurora, não entendia da magia de suas forças adjacentes, tampouco sabia o que significava: “se não fosse o amigo violão, morreria de saudade e de dor”.
Talvez nunca tenha percebido que existem várias maneiras de o destino ser traçado, consumido ou degustado. O catador de papel sabia que o jeito despojado de consumir a sua manhã daquele jeito era o mesmo que desejar um dia saudável. A funcionária, que vivia confinada na escravidão do seu hermetismo infértil, não sabia amanhecer.
Enfim, o catador de papel deixava que o dia acontecesse e celebrasse a vida com tamanho desprendimento, pois é a alma que dá um bom tamanho a cada um que por aqui passa com o seu papel de viver (não apenas existir), catando e cantando o verdadeiro sentido da existência.