Um catador de papel era um assíduo transeunte de minha rua. Além do seu esforçado mourejar diário, conduzia o hobby de caminhar cantando e...

Catando e cantando

ambiente de leitura carlos romero cronica conto poesia narrativa pauta cultural literatura paraibana saulo mendonca catador de papel olhar urbano cotidiano
Um catador de papel era um assíduo transeunte de minha rua. Além do seu esforçado mourejar diário, conduzia o hobby de caminhar cantando e cantar caminhando. Esgrimindo, fazia vibrar o som da voz que entoava as mais variadas melodias do cancioneiro popular.

Com a sua carroça tecia o seu itinerário seguindo e apanhando pedaços de sua remuneração encontrados no meio do caminho. Nada muito estranho. No entanto, foi olhando para aquele trabalhador de rua - de sol a pino e mesmo assim cantando - que reli um certo capítulo da história, aquele que um dia me deu lições sobre a aurora. Logo recapitulei: viver amanhecendo é amanhecer vivendo.

Colocar isso para dentro de si é o inverso dos que se debruçam sobre desejos cifrados, com vícios de ânsias alucinantes de se verem “ricos”. Viver já nos vale uma fortuna! Esses, além de caminharem desapercebidos, absorvem a harmonia de seu próprio percurso, irrompendo o mundo dentro deles, como esse catador cuja voz rouca e afinada todos os dias põe na rua seus suores e vai seguindo, e assim vai passando e vai vivendo.

A vida, por sua vez, proporciona o seu universo amanhecente. Talvez por isto, a espiritualidade de Kardec diz que os inóspitos de grandeza são infinitamente estéreis. Infelizmente, ínfimos dentro de si. Só não podemos pensar que são dispensáveis ao convívio da humanidade. Fugiríamos da convivência com os seres desiguais.

“Se não fosse o amigo violão, morreria de saudade e de dor”. Assim andava o catador encurtando o seu caminho, na trilha estridente dos roncos dos automóveis e do seu trabalho “espinhosamente musical”. Será que sabia que ali era apenas a sua passagem? Sei que decifrava facilmente o seu espírito e o código de sua predestinação kármica, regendo o seu próprio refrão. Cumprindo!

Fiquei pensando numa certa funcionária que conheci numa repartição pública. Há tempo, o mau humor tomava conta dela e se manifestava reações das mais esquisitas! Até o cumprimento, o tradicional “bom dia”, representava a mais injusta cobrança que lhe faziam. A cara amarrada numa tamanha rigidez não a deixava reagir aos cumprimentos. Mas a razão era muito simples: ela não tinha nenhum conhecimento das sensações capazes de gerar o zen da aurora, não entendia da magia de suas forças adjacentes, tampouco sabia o que significava: “se não fosse o amigo violão, morreria de saudade e de dor”.


Talvez nunca tenha percebido que existem várias maneiras de o destino ser traçado, consumido ou degustado. O catador de papel sabia que o jeito despojado de consumir a sua manhã daquele jeito era o mesmo que desejar um dia saudável. A funcionária, que vivia confinada na escravidão do seu hermetismo infértil, não sabia amanhecer.

Enfim, o catador de papel deixava que o dia acontecesse e celebrasse a vida com tamanho desprendimento, pois é a alma que dá um bom tamanho a cada um que por aqui passa com o seu papel de viver (não apenas existir), catando e cantando o verdadeiro sentido da existência.


COMENTE, VIA FACEBOOK
COMENTE, VIA GOOGLE
  1. Como sempre um texto que encanta e traz uma reflexão de como devemos viver, pois "viver já nos vale uma fortuna". Fazer da vida uma "canção agradável" é viver e aproveitar os momentos e existir, tentar transformar os momentos de mau humor em reflexão da própria existência. Tudo tem um propósito, "catando e cantando" é um exemplo de entender a existência desse propósito.

    ResponderExcluir
  2. Compreender a grandeza das diferenças e aceita-las,nos faz seres dotados de uma percepção da vida com um olhar totalmente humano,voltado tão somente para os sentimentos expressados pelo o nosso íntimo,que é o coração. e quando enxergamos com o coração fica mais fácil de ver a beleza do outro em sua total simplicidade. BELO TEXTO POETA,PARABÉNS!

    ResponderExcluir
  3. À proporção que vamos lendo, o amanhecer vai se concretizando em nós. Além da beleza poética, viver a poesia de Saulo é como não só admirar a lua, mas sentir o luar. É um mergulho na alma, é uma explosáo de sentires humamente em epifanias. Não me contento em apenas lê-lo, mas, assim quererei dividir com amigos e amigas, alunos e alunas num estado de poesia Sauloniano. E que possamos amanhecer com tantas luzes.

    ResponderExcluir
  4. Lindo texto Saulo, como sempre adoro tudo que vc escreve meu querido poeta, o relado desses dois fatos ,um não sei se real , e outro muito real, faz agente se alegrar com sua belíssima ilustração, parabéns mais uma vez fico feliz por vc existir bj grandao

    ResponderExcluir
  5. Salvas👏👏👏 ..Saulo Mendonça Marques...singelo texto,mas muito profundo no " Catar Cantando"... ou seja: Trabalhar externando alegria!!!
    Paulo Roberto Rocha

    ResponderExcluir
  6. Eita! O q falar? Sou só uma "simples mortal" admiradora desse mundo lírico! Saulo não tem comparação na sua capacidade de captar o belo em tudo! Parabéns! E como já diz o ditado: quem canta os "males" espanta! Então, q cantemos!👏👏👏

    ResponderExcluir

leia também