Esta aconteceu aqui mesmo em João Pessoa. No dia da votação para prefeito e vereador me dirigi à escola estadual na qual estão situadas...

Borboletas em Manaíra

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Esta aconteceu aqui mesmo em João Pessoa.

No dia da votação para prefeito e vereador me dirigi à escola estadual na qual estão situadas a minha zona e seção eleitorais. Há muito não moro mais no bairro de Manaíra, mas preservei o local de votação como uma deferência aos tempos de adolescência e juventude, passados lá.

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A cada eleição, revisito memórias ao voltar àquele local de votação, que mudou pouco ao longo dos anos, diferentemente do seu entorno.

Nestas eleições tentei seguir o roteiro arquitetônico de sempre para chegar à escola, dispensando momentaneamente o GPS e reforçando o meu itinerário emocional. Perdi-me duas vezes.

Lembrava das bonitas casas de esquina, de arquitetura modernista e com jardins bonitos e bem cuidados. A cada pleito, elas foram desaparecendo, mas sempre restava uma ou outra, espremida entre dois arranha-céus. Dessa vez, praticamente todas sumiram.

Bem próxima a escola, havia uma banca de revistas chamada “Eu e ela”, mas já não há mais eu nem ela, e nem mesmo bancas. Sim. No plural. Elas se foram para dar lugar a um misto de ponto de vendas de poucas revistas e de muitos artigos de artesanato, produtos de limpeza, bebidas e outras quinquilharias que tentam manter viva uma caricatura do que já foi aquele negócio. Há redes, panos de prato, tapetes, mantas para sofá, capas para almofadas, toalhas de mesa, de banho, de rosto, mas cada vez menos impressos.

As bancas de revista eram exuberantes na quantidade de publicações em exibição, com todos aqueles jornais nacionais e locais, revistas de todos os tipos sobre todos os temas, de quadrinhos a edições com itens para colecionadores de miniaturas. Quando vivi na Espanha, observei a epítome dessa cultura de bancas de revistas abarrotadas com tudo o que um leitor curioso e ávido poderia desejar, até mesmo livros. Porém, subitamente, tudo se tornou virtual e eletrônico. Todo aquele conteúdo se transferiu para a “nuvem” ou só é acesível através de assinaturas on-line.

A plataforma mudou. Não é mais o papel, destinado agora a embalagens e até a construção civil. Há paredes de papel, mas não há mais encartes, almanaques ou edições especiais.

É difícil encontrar algum jornal impresso até para cachorro fazer xixi. Tropeço na velocidade e na intuitividade deste admirável mundo novo, para mim tão volátil e intangível.

“Panta Rei”, “tudo passa”, disse o velho Heráclito de Éfeso. O rio nunca é o mesmo. As casas, os endereços e as referências espaciais e afetivas, também não são mais as mesmas.

A gente vai se tornando, aos poucos, um fóssil vivo da nossa própria época. Numa entrevista concedida ao Correio da UNESCO, que chegava sempre em minha residência impresso e pelos correios, o famoso cineasta francês Frédéric Rossif, morto em 1990, recitou um verso dos Upanishads: “Após a batalha, as borboletras multicoloridas pousaram nos guerreiros mortos” e refletiu sobre ele dizendo que as borboletas são seres vivos presentes na Terra há muito mais tempo que a nossa espécie e que, provavelmente, aqui ainda estarão quando os seres humanos não mais habitarem o planeta.

As borboletas apareceram em meados do período cretáceo, ou seja, há cerca de cento e seis milhões de anos. O nosso antepassado mais antigo, o orrorin tugenensis, tem apenas seis milhões de anos. São respeitáveis cem milhões de anos de diferença. Eu apostaria na permanência das borboletas... Na terceira tentaria de encontrar o meu local de votação, religuei o GPS e, só então, consegui chegar lá.

Ir votar no bairro de Manaíra me recorda pessoas e momentos queridos, como o ocorrido uma vez, na casa onde vivi com a minha avó e tias na Avenida General Edson Ramalho, bem a frente do terreno no qual hoje funciona um hotel a beira mar.

Lembro do meu tio chegando na casa da minha avó e dizendo, ao ver a irmã dela, velhinha, sentada numa cadeira de balanço na varanda e contemplando o mar com toda tranquilidade:

— Desse jeito vai viver mais de cem anos!

Hoje a casa já não existe e sequer é possível divisar a praia desde o terreno no qual ela foi construída.

Meu tio, minha avó e minha tia avó, todos já se foram.

De repente me dei conta de que sou a última testemunha daquela cena. Talvez um dia as letras desse texto, ou de outros que escrevi, ao modo das borboletas multicoloridas dos Upanishads, pousem sobre minha memória quando eu também não estiver mais por aqui.


Emerson Barros de Aguiar é escritor neoarmorial, teólogo e jusfilósofo progressista

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