Em meados da década de 1940, o bolero, principalmente de origem mexicana, invadiu o mercado de música brasileiro . Para o pesquisador Jair...

A saga do baião que ganhou o mundo

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Em meados da década de 1940, o bolero, principalmente de origem mexicana, invadiu o mercado de música brasileiro. Para o pesquisador Jairo Severiano, “como nosso gênero musical mais próximo do bolero era o samba-canção, este tipo de música cresceu extraordinariamente [...] a força do bolero, digamos, potencializou o samba-canção”. Esta situação levou a uma mistura tão grande entre os dois gêneros
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que algumas etiquetas de discos da época indicavam as músicas como “samboleros”.

Nesse tempo, em que havia uma desnacionalização evidente da música brasileira, um instrumentista pernambucano decidiu procurar um parceiro para lançar, no mercado, músicas da sua região de origem. Inicialmente, contatou o compositor cearense Lauro Maia. Este, julgando-se inadequado para a tarefa, indicou um cunhado seu que atuava como advogado e também produzia músicas. E é o então advogado Humberto Teixeira quem conta ao pesquisador Miguel Ângelo de Azevedo (Nirez):

"Um belo dia, eu estou no meu escritório de advogado lá no Rio, na avenida Calógeras, quando me procurou o Luiz Gonzaga. Se apresentou, eu o conhecia de nome [...] Aí falou da ideia dele de deflagrar a música do norte, como ele chamava, nos grandes centros [...] nós ficamos de quatro e meia até quase meia-noite, nesse primeiro encontro [...] nos relembramos dos ritmos nordestinos. Naquele dia nós chegamos a duas conclusões interessantes. Uma delas é que a música ou o ritmo que iria servir de lastro para nossa campanha de lançamento da música do norte, a música nordestina no sul, seria o baião [...] três dias depois nos reencontramos e aí nós já fizemos, de pedra e cal, o primeiro baião que se gravou em todo o mundo e que recebeu o nome de Baião. Gênero: baião. É aquele (canta): 'Eu vou mostrar pra vocês / Como se dança o baião / E quem quiser aprender / É favor prestar atenção [...]'"

“Baião” foi lançado em outubro de 1946 pelo conjunto vocal Quatro Ases e um Curinga. Iniciava-se ali, a inserção da “música nordestina” na cultura de massa do Brasil. Para o historiador Durval Muniz de Albuquerque Jr., em sua obra “A Invenção do Nordeste e Outras Artes”, aquela nova música que Luiz Gonzaga dizia que havia tirado “do bojo da viola do cantador” nordestino, estilizando-a e transformando-a em gênero de música popular urbana “vai ser pensada como representante desta identidade regional que já havia se firmado anteriormente por meio da produção freyreana e do ‘romance de trinta’ [...] Ele (o baião) vem atender à necessidade de uma música nacional para dançar, que substituísse todas aquelas de origem estrangeira. Daí sua enorme acolhida num momento de nacionalismo intenso [...] o baião será a ‘música do Nordeste’, por ser a primeira que fala e canta em nome desta região”

Durante cerca de uma década, a música nordestina (o baião e os demais ritmos do Nordeste que a ele se agregaram) dominou o mercado da música popular no Brasil. Apesar disso, alguns ditos historiadores da música popular designam o período apenas como uma “época de transição” entre a chamada Época de Ouro e o surgimento da Bossa Nova. Essa falta de importância que é dada à fase de predomínio da música nordestina é apontada por Humberto Teixeira, em seu depoimento ao pesquisador Nirez:


“De 47 a 57, quer queiram, quer não, os documentos, a história dos suplementos das fábricas, as gravadoras, o rendimento autoral das sociedades, tudo era feito em torno do baião. O Luiz tem uma mágoa que você não pode avaliar em torno disso [...] os aprendizes de historiadores da música popular brasileira, todos eles muitos falhos, com algumas exceções [...] eles pulam de 47 para a Bossa Nova”.

Nos anos em que a música nordestina esteve em evidência vários artistas já consagrados, como Emilinha Borba, Dalva de Oliveira e Ivon Curi passaram a cantar baião. Autores de outros gêneros, também, faziam músicas utilizando ritmos do Nordeste, como um inusitado “Baião de Copacabana”, composto por Lúcio Alves e Haroldo Barbosa. Um dos que, também, embarcaram na onda do baião foi o instrumentista carioca Waldir Azevedo.

No início de 1951, Waldir Azevedo gravou um disco que tinha duas músicas, uma delas era um baião de sua autoria. Naquela época, além de exímio instrumentista, Azevedo também já era respeitado como o compositor do choro “Brasileirinho”. O baião foi colocado no disco por Waldir Azevedo sem maiores pretensões, apenas para completar a gravação, já que ele fazia fé mesmo era na outra música que fora gravada. O baião foi executado no disco por Waldir ao cavaquinho com um acompanhamento muito simples: dois violões e um pandeiro. Segundo o pesquisador José Ramos Tinhorão, o baião lançado por Waldir Azevedo, que tinha o título "Delicado", “já tinha conseguido em meados de 1951 o prodígio de vender duzentos mil discos em seis meses (recorde brasileiro, na época), quando começaram a chegar da Europa pedidos de direitos para a sua reprodução”.

Naquela época, as apresentações de Waldir Azevedo por todo o Brasil tinham grande plateia, ao ponto do instrumentista comentar, em uma entrevista dada ao Diário Carioca, que os seus shows no Nordeste haviam causado grande furor, afirmando que “quando estive em Campina Grande para a inauguração da Rádio Caturité só faltou sair tiro”.

O êxito do “Delicado” levou Waldir Azevedo a excursionar por países da América do Sul. Segundo Tinhorão, em Buenos Aires, “Delicado” “foi em poucos meses gravado em cinco diferentes versões, e 130 mil discos foram vendidos em toda a Argentina”. O sucesso do baião de Waldir Azevedo se alastrou por toda a América Latina, o que fez com que a música chegasse aos Estados Unidos.

É importante ressaltar que antes do “Delicado” chegar aos Estados Unidos houve uma tentativa frustrada de inserção do baião no mercado norte-americano. Em 1950, Carmem Miranda cantou o “Baião” de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira no filme “Nancy Goes to Rio” (Romance Carioca). Mas a música está tão desfigurada na película, em um ritmo próximo de marchinha de carnaval e com sua letra em inglês (Ray Gilbert), que se demora em identificá-la.

Em 1952, “Delicado” foi gravado, nos Estados Unidos, pela orquestra do maestro e arranjador Percy Faith, se transformando em um estrondoso sucesso, o que pode ser comprovado por um fato inquestionável. A revista norte-americana Billboard, criada em 1894 e ainda em circulação, foi, durante décadas, a “bíblia” da música popular dos Estados Unidos, e, porque não dizer, de todo o mundo. A partir de 1936, a revista começou a publicar a lista das músicas mais tocadas e vendidas. Essa relação sinalizava para a indústria fonográfica as preferências e os gostos do mercado consumidor.

Durante os mais de 80 anos em que o ranking da Billboard vem sendo divulgado, pouquíssimos brasileiros chegaram às primeiras posições da lista da publicação. Apesar do seu grande sucesso nos Estados Unidos, com dois milhões de discos vendidos, “Garota de Ipanema”, de Tom Jobim e Vinícius de Morais, com o título e letra em inglês, somente conseguiu atingir, em julho de 1964, a quinta colocação na Billboard. Os brasileiros que mais se aproximaram do topo foram Sergio Mendes e a sua banda Brasil’66, com a versão de “The Fool on the Hill”, dos Beatles, e os cearenses Índios Tabajaras, com a versão instrumental do fox mexicano “Maria Elena”, chegando, as duas gravações, a um terceiro lugar na lista da revista.

Mas, anos antes, no início de julho de 1952, o baião “Delicado”, mantendo seu título original em português, assumira o topo da lista da Billboard, ocupando a primeira posição em quase todos os estados norte-americanos onde era realizada a pesquisa da revista.
A gravação da música pela orquestra de Percy Faith obteve sucesso mundial. Waldir Azevedo contava que, numa excursão aos países árabes, ao comprar uma singela caixinha de música, teve a surpresa de estar lá registrado o seu “Delicado”.

Em qualquer coletânea internacional das músicas representativas do ano de 1952, invariavelmente, estará o registro de Percy Faith para o “Delicado” de Waldir Azevedo, que ainda teve várias outras gravações nos Estados Unidos, entre elas a da cantora Dinah Shore, com letra de Jack Lawrence (o letrista de “Tenderly” e "All or Nothing at All", o primeiro sucesso de Frank Sinatra), e as das orquestras de Stan Kenton e de Ray Conniff.

Na noite do dia 4 de agosto de 1955, Carmem Miranda se apresentou no “The Jimmy Durante Show”, popular programa da televisão norte-americana. Uma das músicas que Carmem cantou no show da televisão foi o “Delicado”, com uma letra feita por Aloísio de Oliveira, o líder do "Bando da Lua", grupo que acompanhava a cantora. Depois da apresentação, nas primeiras horas do dia seguinte, Carmem chegou a sua casa. Dormiu e não acordou mais.
Um infarto fulminante interrompeu, aos 46 anos de idade, sua admirável carreira.

No início deste ano de 2020, o baião “Delicado” voltou a ser lembrado em alto estilo. Um dos filmes que concorreram à premiação do Oscar foi “O Irlandês” (The Irishman, 2019), de Martin Scorsese, com Robert de Niro, Al Pacino e Joe Pesci. Na excelente trilha sonora de “O Irlandês”, utilizando as músicas representativas da época da trama do filme, aparece em uma das cenas o “Delicado” de Waldir Azevedo, na gravação de 1952 da orquestra de Percy Faith. Mas, essa não foi a primeira participação do “Delicado” no cinema. Em 1954, a música já havia feito parte da trilha sonora de “Terza Liceo” (no Brasil: “Onde a Vida Começa”), aparecendo em posição de destaque na abertura do filme do italiano Luciano Emmer.

O sucesso internacional do “Delicado” fez com que aquele ritmo que Luiz Gonzaga extraíra dos violeiros do Nordeste brasileiro se espraiasse por todo o mundo ocasionando as mais insólitas apropriações. Em 1951, o maestro italiano Armando Trovaioli (com o pseudônimo Vatro Roman), conhecido compositor de músicas para o cinema, usou um típico baião nordestino na trilha sonora do filme “Anna”, do diretor Alberto Lattuada. O baião “El Negro Zumbón” (também conhecido como “Anna”), composto por Trovaioli para o filme, teve também, grande êxito internacional. Na película de Lattuada, a grande atriz italiana Silvana Mangano dubla, no “Baião de Anna”, a voz da cantora Flo Sandon’s.


A explosão mundial do baião principiada por “Delicado” também ocasionou apropriações musicais fraudulentas, duas das quais, as mais flagrantes e descaradas, ocorreram nos Estados Unidos e na França. Em 1951, ano do início do sucesso internacional do baião de Waldir Azevedo, a conceituada cantora norte-americana Peggy Lee gravou, em um dos lados de um disco de 78 rpm, uma música com o título “Wandering Swallow”, de autoria de Harold Stevens e Irving Taylor. Não haveria nada demais se “Wandering Swallow” não fosse o baião “Juazeiro”, que Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira haviam composto em 1949. A gravação omite os créditos aos seus verdadeiros autores da música.

“Juazeiro” também seria objeto, na França, de um outro esbulho. A música foi gravada pela cantora Renée Lebas com o título “La Voyageuse” sem nenhuma referência aos seus autores brasileiros, conforme conta o próprio Humberto Teixeira: "o plágio se estendeu à França [...] nós nunca conseguimos nos ressarcir desses direitos injuriados e usurpados”


A grande repercussão mundial do ritmo do baião, que foi motivada por “Delicado”, acarretou algumas influências, nem sempre muito perceptíveis, em canções da época, no estilo rhythm‘n’blues. Existem opiniões, como as dos respeitados jornalistas paraibanos Assis Ângelo e José Teles, especializados em música popular, que identificam sinais do baião em algumas músicas, como a conhecida “Stand by Me”, gravada por Ben E. King e depois por John Lennon, “There Goes my Baby”, dos Drifters e “Baion Rhythms”, interpretada por Jimmy Beaumont, solista do grupo vocal Skyliners.

Essa saga do baião no mercado mundial da música demonstrou, como ocorreria anos depois com a bossa-nova, a impotência da indústria cultural brasileira em impor o seu produto no mercado internacional, apenas cabendo-lhe, na condição de originária de um país dependente, a cessão da matéria-prima sobre a qual os detentores dos comandos dessa indústria constroem os seus desmedidos lucros.



Flávio Ramalho de Brito é engenheiro e articulista

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  1. E eu pensando que Delicado era um clássico do chorinho! Parabéns pelo conhecimeno e obrigado pelo compartilhamento.

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  2. Super Parabéns Flavio Ramalho de Brito!!! pelo brilhante texto...que nos "lava a alma" ...quando nos resgata a uma REAL posição mundial ao nosso querido BAIÃO.
    Olha o Nordeste ai!!! tão presente no cenario Internacional...no qual as músicas foram e são importantes"Protagonistas"!!!
    Parabéns com muita ênfase~~~ !!! vamos valorizar à nossa cultura musical, que tem tudo a merecer para estar em igualdade de valor artistico/ musical aos demais países.
    Salvas 👏👏👏Muitas mesmo💥

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  3. Grande relato sobre a evolução e difusão da música nordestina, que ainda hoje é muito tocada no Brasil.
    E outras músicas que, embora compostas por sudestinos, são, na verdade, música do nordeste, como Paratodos, de Chico Buarque.

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