Não sei se vou conseguir. No entanto, se disser o mínimo, já é o suficiente para dar o testemunho e dizer que ele foi um amigo muito especial, incrivelmente humanizado. Já me basta saber que ele, no jeito espontâneo que tinha, emitia o sentido do verdadeiro afeto, da sincera lealdade. Era sereno e sabia, nas reações da afetividade, exibir todos os traços que marcaram a sua existência.
Puxava conversas com ele. Insinuava que entendia. O meu dedo à sua frente recebia sempre do seu pé um tenro aperto, um afago. Porém, nunca imaginei que um dia estivesse bem próximo da sua gaiola aberta, aqui do meu lado, ao tempo, bem distante de seu grito, o que sempre esgrimia, quando, muitas vezes, me chamava “Poetinha”, a única pessoa a quem tratava com esse nome.
Por isso, algo me pede para não ficar aqui sozinho. Talvez pelos íngremes recantos dos abismos da nossa vida simples, aptos à consciência de que temos que nos acostumar com as químicas desiguais e árduas dessa tipologia de bichos-gente e de homens-bichos. E, mesmo parecendo contraditório, assim nos sentimos: vivos e capazes de conseguir conviver com tudo aquilo que só aparentemente morre. Seja bom, seja ruim, continuará fazendo parte do nosso show.
Decidi rechear este papel de girassóis. Eram as sementes que eu comprava na feira livre do bairro da Torre para alimentá-lo. Agora, guardo-as num depósito que quero chamar de lembrança, onde alimento e nutro sua presença. É pouco ainda, meu caro, diante de uma dimensão e de uma sabedoria que tanto ele me ensinou! Sabia sequer que amanheceria sem os zunidos e apenas ouviria o eco de suas palavras soltas, absortas por entre essas grutas silentes da madrugada.
Mas, é porque o que ficou dele me sobra profundamente, prende-me na gaiola onde deixou presa toda uma história, essa que o tempo e o espaço exíguo não me deixam contar in totum neste espaço diferente demais dos outros comuns!
Porém, percebi que me tornei mais resistente a partir do tempo em que aprendi a falar com animais, na linguagem mútua do silêncio. São as sementes e a plantação que atingem às longas distâncias e, depois, crescem, e logo somos surpreendidos pelas colheitas de suas metamorfoses.
O meu dedo, ao invés do aperto, do afago, hoje, arde de pensamentos. Ele levantou voo e arribadou, feito ave de arribação. Sei lá pra onde! O “Poetinha” migrou para um lugar infinito. Os dígitos teclam num ar estranho e sem pestanejar. Também eu não abro o bico! Caí dentro de um escuro de nunca mais ouvir me chamar “Poetinha”. Não pela palavra dita, mas pelo desvelo como emitia, pela atenção sempre colocada à minha disposição. Foram 31 janeiros. E, de repente, órfão de um dos meus melhores apegos. Por isso que, desse outro lado, tenho que embalsamar algo que sinto, para poder sempre ficar a vê-lo daqui, por incrível que pareça, ainda amanhecermos conversando. Vai longe o tempo em que amanhecíamos juntos e víamos o dia nascer nos seus primeiros raios.
Dói. Essa palavra, em três décadas, ele não conseguiu aprender. Também nunca lhe ensinei a dizê-la. Muito menos, a recitá-la. Porque essa palavra nunca fez parte do nosso mundo, tampouco existia no nosso dicionário de amenidades. Agora já existe. E como dói sentir que, dessa torneira, escorre um rio inteiro, descendo pelas horas afora, num saudoso líquido, imensamente soturno e amargoso.
Saulo Mendonça é escritor, poeta e haikaista