Algumas vezes já me utilizei de uma frase que Manuel Bandeira tomou de empréstimo a Wagner: “(...) numa de suas páginas, Wagner contou nunca exprimir o que via, mas o que sentia a propósito do que via, quando a maioria dos poetas conta apenas não propriamente o que veem, mas o que leem”. Em outras palavras, distingue-se aqui os poetas que impregnam os seus poemas da “marca suja da vida” em oposição àqueles que se abastecem tão somente das vertentes livrescas, das elucubrações de gabinete.
No texto de abertura de “A Voz do ventríloquo”, o leitor se depara com a seguinte observação: “Com a legítima curiosidade de toda criança, Poesia puxou a calcinha e viu que era diferente de Prosa. Ficou encantada com a diferença. Mas, com o tempo, o que era encantamento virou vaidade. Prosa, sentindo-se entediado, caiu no mundo com uma traficante colombiana. Poesia, envaidecida, passou a se preocupar demasiadamente consigo mesma e se esqueceu do humano. Então, o humano virou as costas e foi ao teatro. E Deus, que olhava toda a cena, apertou o gatilho”.
A mim me parece que o texto acima, ao seu modo – e modo bem original, diga-se de passagem -, possui o mesmo significado da frase de Wagner utilizada por Manuel Bandeira, qual seja a de que a poesia, quando se compraz consigo mesma e vive na contemplação do próprio umbigo, apenas se espoja nos estreitos limites do virtuosismo verbal, da pirotecnia, ao tempo em que relega a condição humana a um segundo plano. E quando tal acontece, o humano vira as costas e vai ao teatro, donde se depreende que o poeta dá de ombros para os problemas cruciais do seu tempo, do contexto em que vive, na medida em que articula um discurso postiço, teatral, ornado por todo tipo de berloques e de balangandãs. É quando a forma passa a ser o conteúdo do poema, o que não ocorre em “A Voz do ventríloquo”, onde o eu lírico investe maciçamente no aspecto formal do texto sem fazer ouvidos moucos ao “ ‘estéril’ turbilhão das ruas”.
Lançado em 2012, “A Voz do ventríloquo” tem como epígrafe um verso do compositor Sérgio Sampaio: “O pior dos temporais aduba o jardim”. Quer dizer, embora o eu lírico testemunhe uma realidade dantesca, trevosa, ele não descarta de todo a perspectiva do surgimento da primavera, convertendo-se assim naquilo que Adorno denominou de “Stalthalter”, artista lugar-tenente da utopia, mensageiro da utopia, conforme ratifica o poema “Armadura em carne mole”:
deus me salve da idade madura,
e me sirva o que passa, a brisa
que perdura, gesto escrito com
brasa, pintura além da moldura,
deus me salve, não me serve, o
amarelo que logo apodrece, a boca
coberta de musgo, não é isso
que almejo, os cravos de Cristo, o fraco
pulso do amortecido, persigo
o que persiste, no ontem,
no quando, no não-sei-onde, um
texto-percevejo, traça que rói
a couraça, torre de onde avisto
e percebo, o não-visto que sempre
provo, quanto menos prosa
trovo, a língua que travo
trinca, recolho vida em verso, e
transmuto treva em rosa
“Armadura em carne mole” mescla metalinguagem e vida, pois ao tempo em que o eu lírico expõe ao leitor a sua concepção de poesia, demonstra a necessidade de deitar raízes no aqui e no agora, sentindo a brisa que passa, passa mas perdura, persiste, para recolher vida em verso e transmutar treva em rosa. Ou seja, rosa adubada pelo tédio, pelo nojo e pelo ódio, mas de qualquer modo rosa, tal e qual a flor que irrompeu no asfalto do poema drummondiano.
Sérgio de Castro Pinto é doutor em literatura, professor e poeta, membro da APL