Na sua feição artística, seja poética, dramatúrgica, romanesca, operística,
coreográfica ou sinfônica, a tragédia consagrou-se ao longo de séculos como
monumentais espetáculos concebidos pelo homem.
Na música erudita, há sinfonias descritas como “Tragédias para triunfar”,
expressão usada por estudiosos para classificar algumas destas formas musicais a
partir do período romântico. Nelas o trágico emerge como sentimento de ironia do
destino, por vezes interpretado como crueldade dos deuses, em sintonia com suas
raízes gregas.
A Intervenção das Sabinas, 1799 Jacques-Louis
David
O terror ou a piedade, nelas enfaticamente rebuscados, idem se retratam na
trajetória dos protagonistas, sejam gloriosas ou funestas.
Perante o que lhes traça a existência, os conflitos se digladiam entre anseios,
individuais ou coletivos, e seus inexoráveis desígnios. Em geral, as sinfonias
aqui referidas podem ser marcadas pelos acontecimentos trágicos, provocar
comoção, mas há espaço simultâneo para o cômico, o jocoso, atrelados ao caráter
aparentemente caótico da criação cósmica, em que a Vida é recriada a partir de
fenomenais explosões. Relembremos de que a própria sátira grega também era uma
das vertentes da tragédia, em que se sobrepunham a ironia, a comicidade do
deboche, como nas festas dionisíacas.
Foram muitos os compositores que conceberam sinfonias tidas como “tragédias para
triunfar” nesse universo apaixonante, no qual se purgam terror e compaixão,
capazes de gerar o pretendido efeito de catarse em suas dramáticas
apresentações. A primeira de Brahms, densa e opulente, burilada em 20 anos de
trabalho que resultou numa eufórica trama contrapontística; a transcendental
segunda sinfonia de Mahler (Ressureição), inspirada em um insight mediúnico
vivido no funeral de seu amigo, maestro Hans von Bulow, quando lá recitaram o
poema “A Ressureição”, de Friedrich Klopstock; a cosmogônica oitava de Bruckner,
que ele chamou de “Mysterium”, e apenas para revisá-la, antes de estreá-la em
Viena, precisou de 3 anos; assim como a premonitória quinta de Beethoven (A
Sinfonia do Destino), e tantos outros majestosos poemas sinfônicos, são alguns
emblemáticos exemplos.
Para autores clássicos, a tragédia pode ser considerada como o mais nobre dos
gêneros literários, uma vez que em seu grandioso arcabouço cabem todos os
deuses, o destino, a fantasia, as complexas relações sociais e a própria
condição humana. Desde os ditirambos que a originaram – exuberantes odes em
forma coral - nos quais duelavam conceitos apolíneos e dionísicos, conflitos da
individualidade, da aparência, em luta íntima entre opostos metafísicos, o
desejo como impulso da tragédia foi, sim, a representação do mundo, da natureza,
da ética e da beleza.
A Intervenção das Sabinas, 1799 Jacques-Louis
David
Talvez seja na Música que o êxtase emocional deste gênero tão apreciado e
historicamente explorado tenha encontrado sua expressão máxima. Um dos grandes
exemplos é a oitava sinfonia do controverso compositor russo Dimitri
Shostakovich. Para a crítica da época, uma obra exagerada, mundana e, em certos
momentos, caótica. Ainda que fosse esta a clara intenção do autor, dada a visão
de mundo que aparentava cultivar. Houve quem identificasse na polêmica peça a
expressão de “esmagamento total do indivíduo”. Há momentos implacáveis sob
intenso “ostinato”, “semelhantes a uma máquina” insensíveis aos “gritos humanos
que cavalgam acima deles”. Como “antes de um tiro fatal ou de uma guilhotina
atingir seu alvo”.
Assim foi descrita, por alguns, como “a música mais assustadora que Shostakovich
já escreveu”, com qualidade voltada para o interior, a provar que “os horrores
da mente são ainda piores do que os do corpo”. Causou frisson e repercutiu nas
hostes da ditadura soviética que identificou na oitava elementos românticos
“muito ocidentais”, determinando a suspensão imediata de suas performances
públicas e destruição de todas as edições impressas.
Apenas o primeiro movimento já se molda como perfeito exemplo que define o drama
musicado. Vamos a ele, com todos os figurantes!
O prólogo anuncia a tragédia. Grave, épica, solene, triunfa muito bem
caracterizada na dramática abertura. A plateia se põe imóvel, em total suspense.
Cala-se a orquestra e, em pianíssimo, lentamente vão-se abrindo as cortinas para
exibição do cenário propício ao que se segue.
Feixes de luz descobrem recantos, engrandecidos pela luminosidade que, aos
poucos, os atinge por completo. Está exposta a tessitura em que tudo acontecerá.
A introdução esmaece concluindo-se na volta do tema inicial, ao fundo e
distante, igualmente grave.
Os personagens vão surgindo aqui e acolá em pequenos solos enfáticos de três
notas (duas fusas e uma semínima pontuada). Cada um com sua personalidade.
Emergem pontuais, contundentes, como elementos de um conjunto que se promete à
perfeição artística. Após a exposição, tudo se acalma.
A Intervenção das Sabinas, 1799 Jacques-Louis
David
Dá-se início a dissonâncias que relembram de como são conflitantes a imagem e as
relações dos personagens descritos, tão quanto a diversidade em que se concebe o
próprio existir.
Introduzido pela flauta, entra em cena o primeiro personagem: o Amor! - descrito
em tema lírico pelas cordas. Com reflexos da ansiedade própria das paixões,
cresce intenso, ansioso, mas logo se apazigua consolidando-se nas bênçãos que
sublimam o significativo sentimento. Depois de breves considerações sobre as
formas com que pode se revestir, sua aparição se resolve no retorno do tema que
inicialmente o apresentou.
A tragédia prossegue sugerindo a apresentação dos outros personagens. E o
próximo nasce da intimidade do tormento existencial: o Destino. É ele o
personagem que ora declama a cena. Sua exposição cresce, torna-se tremendamente
impactante, apoiada em três lamentosas e insistentes notas que se avolumam com a
orquestra.
As batidas que bem o definem anunciam-se à porta, primeiramente com cordas e
tímpanos, depois no estrondoso rufar das caixas que martelam com insistentes
estampidos o carma inelutável, selando-o definitivamente com os cravos da
implacável fatalidade. A epopeica luta cresce encorpando-se até se coroar com
brados orquestrais lancinantes e conclusivos. No topo da convulsão, o veredito:
Não há clemência!
Súbita e oportunamente, Shostakovich faz entrar em cena o caráter cômico,
jocoso, irônico, do personagem capaz de coexistir com os acontecimentos mais
trágicos da vida. Vida que em si não deixa de ser uma comédia. Então, flautas e
flautins e xilofone declamam frases curtas, agudas, saltitantes e fugidias, e
entoam jocoso diálogo com as trompas.
Tudo termina numa grande fanfarra em que a comicidade toma ares marciais, no
categórico e circense desfile que resgata, com surpreendente lembrança, o tema
principal da Marcha Turca da sonata em lá maior de Mozart. Um momento em que
Shostakovich revela sua colorida e diversificada capacidade criativa.
De repente, o autor demonstra que essa irreverência cômica com que agimos na
vida pode vir a ter consequências trágicas. Então, tambores, caixas e tímpanos
aclamam a aparição do mais prepotente dos atores: a insana personalidade bélica
da humanidade, responsável por penosos ciclos de sua história: a Guerra! Quiçá,
estando em 1943, ano de conclusão da obra, o ambiente bélico palpitante entre os
povos já o influenciava…
Sucedem-se a este apogeu catastrófico, instantes que refletem o triste panorama
com tudo impiedosamente dizimado pelos horrores da guerra, e orquestra se cala.
Um lamentoso oboé personifica o desolamento subsequente perante a penúria que se
descortina na paisagem destruída. No trêmulo pedal das cordas ao fundo podem-se
ver resquícios de fumaça, deixados pelo cruel bombardeamento. Um sentimento de
profunda e doída consternação, com culpa e remorso pelo inexpugnável
arrependimento. A dor lancinante perante a morte e a devastação agudiza-se com o
grande questionamento: Por quê e para quê? As cordas se atormentam entrelaçadas
e arrematam a cena no grito dos metais. É o derradeiro suspiro.
Ao fundo, eis que um lampejo de esperança renasce. Afinal, há sempre calmaria a
suceder a agitação tempestuosa. A tragédia é cíclica. Reencarna e se renova nas
eras, como mecanismo intrínseco à evolução planetária.
Narra-se, então, um canto de paz que prenuncia o fim e as cortinas vão se
cerrando lenta e calmamente. A plateia mantém-se implacavelmente imóvel.
Circunspecta, olha para dentro de si, escuta os recônditos silêncios da alma e
conclui diante do que viu, ouviu e sentiu: Há sempre arte e esperança nas
tragédias.