Na sua feição artística, seja poética, dramatúrgica, romanesca, operística, coreográfica ou sinfônica, a tragédia consagrou-se ao longo de séculos como monumentais espetáculos concebidos pelo homem.
Na música erudita, há sinfonias descritas como “Tragédias para triunfar”, expressão usada por estudiosos para classificar algumas destas formas musicais a partir do período romântico. Nelas o trágico emerge como sentimento de ironia do destino, por vezes interpretado como crueldade dos deuses, em sintonia com suas raízes gregas. O terror ou a piedade, nelas enfaticamente rebuscados, idem se retratam na trajetória dos protagonistas, sejam gloriosas ou funestas.
Perante o que lhes traça a existência, os conflitos se digladiam entre anseios, individuais ou coletivos, e seus inexoráveis desígnios. Em geral, as sinfonias aqui referidas podem ser marcadas pelos acontecimentos trágicos, provocar comoção, mas há espaço simultâneo para o cômico, o jocoso, atrelados ao caráter aparentemente caótico da criação cósmica, em que a Vida é recriada a partir de fenomenais explosões. Relembremos de que a própria sátira grega também era uma das vertentes da tragédia, em que se sobrepunham a ironia, a comicidade do deboche, como nas festas dionisíacas.
Foram muitos os compositores que conceberam sinfonias tidas como “tragédias para triunfar” nesse universo apaixonante, no qual se purgam terror e compaixão, capazes de gerar o pretendido efeito de catarse em suas dramáticas apresentações. A primeira de Brahms, densa e opulente, burilada em 20 anos de trabalho que resultou numa eufórica trama contrapontística; a transcendental segunda sinfonia de Mahler (Ressureição), inspirada em um insight mediúnico vivido no funeral de seu amigo, maestro Hans von Bulow, quando lá recitaram o poema “A Ressureição”, de Friedrich Klopstock; a cosmogônica oitava de Bruckner, que ele chamou de “Mysterium”, e apenas para revisá-la, antes de estreá-la em Viena, precisou de 3 anos; assim como a premonitória quinta de Beethoven (A Sinfonia do Destino), e tantos outros majestosos poemas sinfônicos, são alguns emblemáticos exemplos.
Para autores clássicos, a tragédia pode ser considerada como o mais nobre dos gêneros literários, uma vez que em seu grandioso arcabouço cabem todos os deuses, o destino, a fantasia, as complexas relações sociais e a própria condição humana. Desde os ditirambos que a originaram – exuberantes odes em forma coral - nos quais duelavam conceitos apolíneos e dionísicos, conflitos da individualidade, da aparência, em luta íntima entre opostos metafísicos, o desejo como impulso da tragédia foi, sim, a representação do mundo, da natureza, da ética e da beleza.
Talvez seja na Música que o êxtase emocional deste gênero tão apreciado e historicamente explorado tenha encontrado sua expressão máxima. Um dos grandes exemplos é a oitava sinfonia do controverso compositor russo Dimitri Shostakovich. Para a crítica da época, uma obra exagerada, mundana e, em certos momentos, caótica. Ainda que fosse esta a clara intenção do autor, dada a visão de mundo que aparentava cultivar. Houve quem identificasse na polêmica peça a expressão de “esmagamento total do indivíduo”. Há momentos implacáveis sob intenso “ostinato”, “semelhantes a uma máquina” insensíveis aos “gritos humanos que cavalgam acima deles”. Como “antes de um tiro fatal ou de uma guilhotina atingir seu alvo”.
Assim foi descrita, por alguns, como “a música mais assustadora que Shostakovich já escreveu”, com qualidade voltada para o interior, a provar que “os horrores da mente são ainda piores do que os do corpo”. Causou frisson e repercutiu nas hostes da ditadura soviética que identificou na oitava elementos românticos “muito ocidentais”, determinando a suspensão imediata de suas performances públicas e destruição de todas as edições impressas.
Apenas o primeiro movimento já se molda como perfeito exemplo que define o drama musicado. Vamos a ele, com todos os figurantes!
O prólogo anuncia a tragédia. Grave, épica, solene, triunfa muito bem caracterizada na dramática abertura. A plateia se põe imóvel, em total suspense. Cala-se a orquestra e, em pianíssimo, lentamente vão-se abrindo as cortinas para exibição do cenário propício ao que se segue.
Feixes de luz descobrem recantos, engrandecidos pela luminosidade que, aos poucos, os atinge por completo. Está exposta a tessitura em que tudo acontecerá. A introdução esmaece concluindo-se na volta do tema inicial, ao fundo e distante, igualmente grave.
Dá-se início a dissonâncias que relembram de como são conflitantes a imagem e as relações dos personagens descritos, tão quanto a diversidade em que se concebe o próprio existir.
Germano Romero é arquiteto
e bacharel em música