Por que digo isso? Ao lembrar dos ataques dirigidos a Chico Buarque de Hollanda nos últimos anos. Gregório Duvivier, em crônica publicada na Folha, chegou a dizer que, para ele, os eventos contra o compositor e escritor causavam indignação de tal monta que era “como se chutassem uma santa ou rasgassem a Torá”.

Embora possa parecer uma simples digressão, considero esse evento e a feliz frase de Duvivier uma boa oportunidade para discutir a importância dos ídolos na atualidade.
Sempre defendi que o escritor não pode se permitir ser transformado em imagem que suplante em importância sua produção artística. E a forma mais eficaz para isso é se propor a desconstrução como homem. Considerar que o mais relevante é sua obra e não ele. Advogo a passagem por um processo de “limpeza” e relativização da relevância.
Mas a grande questão é que muito dessa idolatria pode independer do próprio indivíduo. Ela é uma necessidade conhecida ― e muito frequentemente contabilizada ― do homem de nosso tempo.
Há um tempo para os vivos e há o tempo dos mortos.
Enquanto tentamos dilatar ao máximo o ínfimo tempo da consciência, o outro – o nada – já se apresenta distendido a infinita e desesperadora potência. E talvez seja por isso que, ao longo de toda a existência humana ― basta recordarmos a Grécia antiga ―, o homem elaborou seus mitos, criou e descobriu seus deuses e semideuses.
Mas como poderíamos aproximar-nos dos artifícios lançados por nossos contemporâneos para lidar com a finitude? Como negar a morte?
Poderíamos partir da ideia de uma nova e talvez transitória trindade. Não a Santíssima Trindade e suas implicações doutrinárias e cosmogônicas, com seu lastro histórico de batalhas que, em contrapartida, foi uma grande fomentadora da arte e da cultura ocidental ao longo dos séculos. Proponho uma trindade pós-moderna, desfigurada e demasiadamente terrena e um homem mal-estruturado para suportá-la.

E a ideia do poder divino de Deus foi desconstruída progressivamente. O fascínio com a ciência, o desmascaramento do GÊNESIS, os espasmos intestinais de Darwin em função das incontestáveis conclusões pacientemente colhidas, o turbilhão em que se encerrou o século XIX com as considerações de Hegel e Feuerbach, as revelações de Schopenhauer e Nietszche, as ervilhas de Mendel, o materialismo dialético da dupla Karl Marx & Engels e o inicio das publicações de Freud corroboram essa afirmação.
Já nos meados do século XIX, em seu livro A essência do cristianismo, Feuerbach partiu de uma citação de Petrônio: Primus in orbe deos fecit timor, isto é, o medo foi que primeiro criou deuses no mundo, para demonstrar que o medo surgiu no homem por causa do sentimento de dependência. Daí a afirmação de que a religião seria a fase infantil da humanidade. Mas o homem do final do século XIX e do inicio do século XX, o homem racionalista e positivista, o homem que criou a nova religião ‒ o comunismo ‒ ainda se mantinha ingênuo.
Hoje, com o devido distanciamento, vemos com clareza o que o homem ávido pelo poder é capaz de realizar em frente a uma circunstância apropriada e de uma sociedade míope e carente.

Ocorreu que, após a Segunda Grande Guerra, muitos dos artistas e intelectuais que já desprezaram deus e o diabo, mantiveram a visão maniqueísta do bem e do mal. Só que agora eram outros os deuses, eram outras as religiões – sendo a maior de todas o socialismo.
Mas, fazendo isso, os homens plantaram na terra seus ídolos, agora palpáveis e contraditórios. E vieram as guerras e a divisão da Europa. E, quando mais tarde caiu o muro, desmascarou-se o mito.
Visionário, o poeta mexicano Octávio Paz em seu livro Itinerário, já declarava suas suspeitas, daí as consequentes inimizades contra ele fomentadas no meio intelectual da época. E tanto Otávio Paz quanto o poeta polonês Czeslaw Milosz, em seu livro Mente Cativa, diziam do “sequestro” ideológico de várias mentes brilhantes – e ambos citaram o poeta chileno Pablo Neruda – que foram seduzidas pelo comunismo.
Segundo Paz, tratou-se de uma “aberração da classe intelectual moderna”. E essa “ferida secreta na consciência”, resultado do afastamento, talvez uma extração a fórceps da totalidade dos antigos absolutos religiosos, fez crescer nos intelectuais um sentimento de “nostalgia da totalidade e do absoluto”. Dessa forma Octávio Paz tentou explicar a adoção do comunismo por uma imensa parcela da classe intelectual ao longo do século XX.

Retorno agora ao nosso Chico, tomando como ponto de partida a polêmica frase de Millôr Fernandes: Eu desconfio de todo idealista que lucra com o seu ideal.
Já defendia Tolstoi ser inaceitável todo espirito de partidarismo, como “segredos” e “senhas”, a divisão rígida em “nossos” e “ estranhos”, o desejo desenfreado de fazer propaganda.
Mas será apenas essa a questão?
No meu entendimento, o que acontece é que existe um sentimento dúbio em relação aos ídolos. Uma relação de amor e ódio. Talvez uma transferência de nossas imperfeições. O que abominamos em nós, como nossos desejos mais sórdidos, é transferido, com toda sutileza inerente à plasticidade de nossa consciência, para o outro. Ao contrário da desconstrução, muitas vezes dolorosa, da relevância de Deus em nossas vidas, criticar nossos deuses terrenos é algo que pode e nos dá prazer. Nos dá gozo.
Chico Buarque é um dos maiores ícones nacionais e, se observamos com atenção, o culto de sua imagem se inicia no momento em que o registro sonoro se soma à imagem dos festivais. Indiscutivelmente, na década de sessenta, a imagem, com o maior acesso à televisão, iniciava sua triunfal ascensão de sucesso que culminou no efêmero dos dias atuais.
Sem perceber, já introduzi em nossa discussão o segundo componente da nova trindade – o homem.
A metafísica do homem comum sempre foi um prato de comida; e a transcendência, algo deixado para a última hora, algo sempre presente, mas guardado no inconsciente. Eis aí esse homem, agora “liberto”, mas despreparado. Sem a sustentação de uma Igreja que perdeu o poder e de um Estado que perdeu o território.
E disso soube aproveitar um novo poder invisível. O maestro dos desejos e frustrações. Pois esse foi o segredo do sucesso desse novo poderoso e descompromissado déspota: ter a consciência de que o homem é um insatisfeito diante de sua transitoriedade. A esse deus incógnito, disperso na virtualidade, sem endereço fixo, liquefeito, onisciente e onipresente, coube reger esse novo homem a seu bel-prazer.

As mudanças de valores, já sinalizadas por Debort com sua “sociedade do espetáculo”, Alain Torraine, Baumann e tantos outros trazem a reboque uma mídia poderosa, que, a serviço do mercado, cria ou maximiza os ídolos visando, pura e simplesmente, à manutenção do consumo.
O ídolo então passa a ser parte de nossa identidade coletiva, nossa identidade como país. E, como disse Ana Maria Tepedino, eles são gestados, paridos, relacionados às circunstâncias “e nos fazem perceber que o mundo social é o resultado de nossas representações, de nosso imaginário, de nossos desejos e sonhos, que são manipulados pela Mídia”.
“No entanto, ao contrário da história, que tinha um sentido e uma verdade, a mitologia é uma sequência de episódios efêmeros. Pode-se dizer que há um claro-escuro onde não se pode ver claramente. Aqueles que chegam ao topo têm a responsabilidade de ser exemplos para os outros que se projetam neles.”
Neste universo de ídolos que surgem, brilham e se desintegram, conforme a demanda e o interesse do mercado, o caso de um ídolo da grandeza de Chico Buarque ganha uma dimensão ainda mais transcendente que imanente.
Seu surgimento antecede a “profissionalização” da mídia, mas não impede por parte dela, muito pelo contrário, o entendimento de sua relevância e, como poucos, sua não transitoriedade. Parte daí, no meu entendimento, a observação de Millor.
Criado o ídolo, estaríamos diante então de uma questão ética?

No caso específico de Chico Buarque, existe um aspecto bem recente e ainda muito pouco compreendido: a utilização de comunidades virtuais, como no caso o Facebook, como forma de perpetuação, discussão e tribuna onde se debruçam seus idólatras e seus críticos. Aliado a isso acrescento um outro aspecto que me parece fundamental: toda a discussão em torno do ídolo serve de pano de fundo para uma discussão ainda maior: o momento político pelo qual passa o Brasil.
Não creio que devamos julgar o fato de o homem Chico Buarque, um socialista, manter-se fiel a um partido político que tanto descontentamento tem trazido aos adeptos da esquerda. Devemos respeitar a opinião de cada um e não ser proselitistas. É inaceitável que qualquer indivíduo seja abordado e ofendido por suas convicções e posições políticas. Estas atitudes têm uma conotação de radicalidade, que, no caso em questão, carreia um traço fascista.
Apenas não podemos deixar de considerar que o idealismo pode macular a capacidade crítica do indivíduo ou do grupo. E, no caso de Chico, prefiro pensar nessa possibilidade a numa simples adaptação oportuna de sua consciência. Não gostaria de usar uma de suas mais consagradas letras:
Quem te viu, quem te vê,
Quem não a conhece
Não pode mais ver pra crer
Quem jamais a esquece
Não pode reconhecer...
No meu caso, penso que a escolha e o debate devam sempre persistir como essência da política. Daí acreditar na atitude inconformista do homem.

O local do horizonte o seu próprio nome diz. Ele é o interminável aos olhos. Não vemos tudo, nunca veremos. Mas temos que justificar nossa existência.
Não vejo o homem, de uma maneira geral, sem um ídolo, sem um deus. Admiro muito o aforismo do escritor italiano, naturalizado argentino, Antônio Porchia:
“Creio em Deus não por mim, muito menos por ele.
Creio em Deus, pelos homens que creem em Deus.”
O que cabe saber, e isso é uma questão de reflexão e lucidez, é que vivemos em um mundo com extremos, e estes também fazem parte da estatística ― e da história. E o extremo é o ponto aonde não devemos chegar.
Jorge Elias Neto é médico, escritor e poeta