Eles formavam um casal de classe média. Filhos de pais humildes, cada um lutou para sair daquela condição precária de vários modos. Ele, quarto filho de seis, tentou estudar, mas parou no ensino médio. Nunca quis exercer a profissão do seu pai, padeiro, e passou a trabalhar numa revenda de automóveis. Ganhava por comissão e nas crises se valia de agiotas e vales que a empresa adiantava com juros. Ela, filha de empregada doméstica, nunca conheceu seu pai. Para não ter o destino da mãe e das duas irmãs mais velhas, passou a trabalhar como manicure num salão de beleza de uma vizinha e estudar à noite numa escola pública do bairro.
Se conheceram numa festinha num dos templos de uma igreja evangélica pentecostal. Foi amor à primeira vista. Ungidos pelo pastor, logo contraíram matrimônio e foram morar num puxadinho da casa da mãe dela.
O pastor prometia vida abastada em troca de ofertas e do dízimo obrigatório. Ele se constrangia em pagar tão pouco, pois dez por cento de nada, nada é. Ela pagava o dízimo em cima tanto do seu mísero salário quanto das gorjetas que recebia. Os valores morais apregoados pelo pastor eram bem diferentes da educação católica que tiveram. Ambos foram educados para a humildade, o bem ao próximo, a caridade e o amor. Agora era a voz do pastor ecoava em suas mentes: ser próspero é ser ungido por Jesus. Quem é pobre é um pecador que paga por seus débitos. Deus concede o dom da prosperidade. Tudo é mérito e, assim sendo, vence quem se esforça.
Depois de muito esforço, houve um tempo, houve um governo, houve alguém que olhou para eles. Compraram uma casinha financiada por um projeto chamado Minha Casa, Minha Vida. Ela conseguiu montar a casa com eletrodomésticos baratos. Ele até conseguiu uma moto e logo depois um carrinho. Depois de três anos, conseguiram vender a casinha do bairro e se mudaram para um pequeno apartamento perto da praia. Ele passou a revender carros e ela abriu um salão pertinho de casa. Voltaram a estudar. Ele fez Direito numa faculdade privada, com subsídios do governo. Ela fez Contabilidade numa Universidade Pública, graças à política de quotas para negros e pardos.
O prédio em que agora moravam era de classe média, uma classe média quase cheirando a novos ricos. Estas pessoas que comem mal, atrasam o condomínio, o aluguel, mas tem um carro do ano na garagem, ou mais de um.
Eles começaram a atrasar a mensalidade da filha que estudava numa escola de bacanas. A lei não permitia que a escola tirasse a menina pela inadimplência dos pais. Ele trocou de carro através de um leasing, pois já sabia que em não conseguindo pagar, poderia comprar outro carro no mesmo sistema. Ela conseguiu ir à São Paulo, comprar roupas chinesas e bugigangas para vender às clientes por três vezes o preço de compra. Viviam, pois, de pequenos golpes, para entrar no maravilhoso mundo dos novos ricos. Mudaram de igreja, para uma recomendada pelos novos amigos. Finalmente ele conseguiu seu maior feito: ser laranja de um advogado rico. Assim, passaram a frequentar as altas rodas de novos ricos, de noitadas de whisky falsificado e picanhas australianas, segundo mandava a moda à época. Chegaram a viajar para Miami, onde visitaram muitos outlets de grandes marcas, a maioria feita com mão de obra semiescrava.
Mandavam alguma ajuda para os parentes que não progrediram.
Familiares medíocres e sem fé. Mortos na roupa. Não tinham o tino empresarial. Conformavam-se com pouco. Também assim os velhos amigos do bairro. Preguiçosos, sem mérito e sem aquele jeitinho que a tudo comanda até hoje neste lugar, talvez um dia um país.
Lá pelos idos de 2014, os negócios do casal começaram a afundar. Começaram a rarear também os convites para os passeios de lancha, as rodadas de camarão no espeto e até mesmo as clientes dela já começavam a inventar desculpas para não mais frequentar aquele salão outrora tão famoso. Eles foram alvos de cobranças judiciais e a filha teve que abandonar o sonho de ser médica em faculdade privada. O mundo estava se fechando para a família. O consumo foi reduzido ao máximo e agora as compras eram feitas num mercadinho do seu antigo bairro. Ainda bem que o apartamento fora quitado numas das maracutaias de lavagem de dinheiro dele. Tinham um mínimo de status, apesar do acúmulo de dívidas do condomínio. Venderam um dos carros, segundo ela “para investir em ações”. Talvez ações de cobrança...
Nas ruas um ruído anônimo. Multidões vagando, garotos correndo, polícia atirando. Nos prédios panelas batendo em agravo à primeira mulher presidente.
O casal, doravante, enxergou seu verdadeiro inimigo, os responsáveis pela sua derrocada, os reais culpados da sua queda: o partido que governava o país. Eram eles, sim, os ladrões, os sujos, os irresponsáveis e corruptos.Deu no Jornal Nacional. A nação urrava pelo fim da corrupção, fenômeno este que nos acompanha desde a fundação da terra brasilis. Nativos escravizados, imensos territórios nas mãos de poucos, degredados, pobres, exilados e criminosos como os primeiros habitantes daquela terra tão rica. Negros trazidos como animais para trabalhos forçados que depois se transformaram em multidões de miseráveis com o fim da escravatura.
Ele e ela são o retrato do ressentimento que povoou corações e mentes do povo deste país a partir de 2013.
Ressentir-se significa atribuir ao outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Eles se ressentiam das suas perdas, mas não por eles mesmos, mas por um outro. Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo pelo que venha a fracassar. Culpavam os pobres por invadir áreas nobres como aeroportos e shopping centers. Na imaginação do casal, depois modulada pelas mídias, por aquelas bestas-feras das redes sociais, eles foram vilipendiados dos seus legítimos direitos, do maior dos direitos num mundo do ter: o direito de consumir.
O ressentido não é alguém capaz de perdoar ou mesmo esquecer. Ao contrário, ele se recusa a esquecer aqueles que lhe fizeram o mal. A mágoa é tamanha que eles também olvidam que os que agora odeiam tanto foram os mesmos que os tiraram da pobreza na qual nasceram. Não. Saíram apenas por mérito próprio. O ressentido é um ingrato.
Como ressentidos, o casal ansiava por vingança. Aquela vingança que o velho pastor, ao ler o Velho Testamento, fazia aparecer como ira perfeita do deus judaico-cristão. A verdadeira vingança não era só afastar os culpados do poder, mas exemplarmente puni-los. Cadeia. Talvez até a morte. Ele abriu seu derradeiro whisky quando a esposa de um ex-presidente veio a falecer. Ela foi às redes sociais rir-se da morte do neto deste mesmo ex-presidente. A cristandade e seus mais plenos valores humanos são cuspidos quando chega o ressentimento.
Para o ressentido o tempo da vingança nunca chega. Tudo é pouco e muito cruel.
Nos ares do ano de 2018, a vingança aparecia entre bandeiras verde e amarelo. As antigas cores da pátria amada eram símbolos de um ódio nunca visto. O casal passou a odiar grupos minoritários. Para eles, estes grupos foram muito beneficiados por muito dinheiro que deveria pertencer a quem merece. Eles odiavam a população LGBTQA+, pois estava no livro sagrado que eles eram pervertidos, anormais. Ele esquecera que passou 5 anos envolvido com um casal praticante de suingue e dos beijos salivados que aquele homem dava nele. Ele esquecera de quantas vezes foi penetrado pelo parceiro de suingue. Ele esquecera de que foi ele quem incentivou a sua esposa a buscar grupos de suingue, a fazer o contrato com aquele casal jovem, a se lambuzar de prazer ao ver sua esposa tão recatada se serpenteando com aquela jovem parceira.
Desenvolveram ódios a comunistas, mesmo sem entender o que significava aquela doutrina, ódio a negros e suas cotas de privilégios. O ressentimento anda de mãos dadas ao ódio. É o ódio que limita os horizontes, num exercício gigantesco de esquecimento de um passado de perdas.
Juntos vislumbraram um horizonte que desse conta de suas desilusões: um mito. Um ruidoso militar que representava tudo aquilo que o casal almejava: a volta dos bons tempos de fortuna, o fim dos discursos de direitos humanos, daquele papo chato da ecologia, do calar a boca daquelas feministas e ativistas de minorias. As minorias devem respeito à maioria, claro. Os ressentidos precisam de glórias, de um líder máximo que os conduza a uma terra santa, assim como fez Moisés livrando os judeus da corrupção dos faraós. O fundamentalismo religioso é uma das molas do ressentimento.
O ressentido não tem culpa de nada. Ao contrário, é no lugar da vítima que o ressentimento é instalado. É aquela vítima imolada, passiva como Isaac diante do punhal de seu pai Abraão. Para ela, agora esquecida até mesmo dos grupos de Whatsapp, seu fracasso tinha nome: aquelas políticas públicas de inclusão, aquelas políticas públicas que protegiam bandidos, aquelas políticas públicas que um dia a tornaram uma nova rica. Apesar de negra, rugia contra as quotas raciais, se enrolava na bandeira nacional fazendo arminha com os dedos, uivando feito cadela no cio pelo fechamento do Congresso Nacional, do Supremo Tribunal e até mesmo da jovem e frágil democracia brasileira. Ele liderava marchas de Jesus contra todos. Marchas que lembravam as próprias botas dos militares e sua limpeza política via tortura. Era preciso torturar mesmo, pois aqueles jovens mereciam, eram subversivos e provocaram a ira dos incorruptíveis. Ele andava com a bíblia numa mão e uma pistola n’outra. Armar pessoas era necessário para combater o mal que se instalara naquele ajuntamento chamado Brasil.
O mundo verde amarelo daquela primeira década do século XXI era pintado de vermelho de sangue, de golpes, de tantos ódios quanto possível fossem. Mas para aquele casal, até mesmo o mito e suas ações em nada resultaram. Estavam já decepcionados com o salvador que se preocupava mais com sua própria família que com seus devotos.
Eles se sentiam traídos e sós. Foi assim quando chegou a pandemia e ele adoeceu. Ele mesmo que negava peremptoriamente a existência do vírus, ele que acusava a China de ter adoecido o mundo numa conspiração comunista. Ela entrou em desespero e apelou para seus amigos de festa. A maioria nem a atendeu. Outros apenas se desculparam com palavras fugidias. Cadê os amigos dos passeios de barco? Cadê as amigas das fotos marcadas nas redes sociais?
Ele foi entubado num hospital público. O plano de saúde já os havia processado por inadimplência. Aquele diretor de um hospital privado já havia os bloqueado há tempo. Naquela fria UTI, ele reconheceu uma enfermeira. Era uma antiga vizinha. Era ela mesma. Aquela comunista, aquela mulher nojenta das passeatas do #elenão. Aquela sapatão vermelha que desmaiou depois de um soco que ele lhe dera numa manifestação de rua. Ele não teve coragem de olhar nos olhos dela. Havia uma vergonha de tudo, misturada com um horror de ser cuidado por aquela gente de cotas. Depois de desentubado, foi monitorado por um jovem médico negro, que usava um boton no qual se lia “Fui estudante cotista de Medicina”. Aquele era o lugar da filha deles. Aquela menina que deveria ser médica, mas que fracassara por causa das malditas cotas raciais. Sua esposa estava ao seu lado numa cadeira dura. Também ela reconheceu aquelas pessoas. Mas a gratidão pelos cuidados foi tragada pelos ódios que mais forte pulsavam naquele casal. Não há cura para o ressentimento. Ele é um eterno looping emocional. Volta sempre para dizer ao ressentido dos seus lugares tomados por impostores. Dos seus lugares sagrados roubados não pela elite dominante, mas por aqueles que um dia o ressentido já foi.
Para o casal de ressentidos, o mundo era injusto, cruel até. Mas havia uma esperança de tudo virar, do tempo bom retornar. Esta esperança tinha nome: vingança.
Ressentir não é preciso. Sentir é preciso, como escreveu o poeta.
Tenho apenas duas mãos e o sentimento do mundo, mas estou cheio escravos, minhas lembranças escorrem e o corpo transige na confluência do amor. Quando me levantar, o céu estará morto e saqueado, eu mesmo estarei morto, morto meu desejo, morto o pântano sem acordes. Os camaradas não disseram que havia uma guerra e era necessário trazer fogo e alimento. Sinto-me disperso, anterior a fronteiras, humildemente vos peço que me perdoeis. Quando os corpos passarem, eu ficarei sozinho desfiando a recordação do sineiro, da viúva e do microcopista que habitavam a barraca e não foram encontrados ao amanhecer esse amanhecer mais noite que a noite.
“Sentimento do Mundo" / Carlos Drummond de Andrade
Adriano de Léon é doutor em ciências sociais, professor e escritor