Há uma celeuma no ar. Acredito que sempre houve. Desta feita trazida à tona por uma necessidade dos novos tempos, que a língua ainda não conseguiu acompanhar, nem podemos dizer se vai. Como se sabe, é o uso que faz a língua se tornar linguagem. As mudanças, no entanto, ditadas pelo uso são lentas e vão se acomodando de acordo com as conveniências do uso coletivo. A língua é, sem dúvida, viva e dinâmica, mas a vivacidade e o dinamismo não significam a rapidez que muitos desejam. O poeta Horácio, em sua Arte poética, já nos aponta o uso como senhor absoluto no comando da língua determinando a instauração de novas palavras, termos e expressões, ao mesmo tempo que faz a advertência de usos que cairão no esquecimento. A língua, como um sistema, registra todos, guarda-os, mas só concede a visão da luz do dia àqueles que se empregam pela coletividade.
Alguns dias, acompanhei pela internet pessoas se queixando do emprego da palavra “poeta”, para determinar a mulher que escreve poemas, e defendendo, como melhor termo, “poetisa”. Não sei a que vem a queixa. As duas palavras existem, são utilizadas e podem, sem qualquer problema, ser empregadas para a mulher.
No sistema de nossa língua portuguesa, o feminino se faz por flexão. Em linhas gerais, retira-se da palavra a sua vogal temática e anexa-se-lhe a desinência de gênero, quando existe a oposição masculino-feminino. Assim se dá com pato/pata; gato/gata; sobrinho/sobrinha; filho/filha. Procede-se dessa maneira, pelo fato de que o masculino não tem marca de gênero, diz-se não-marcado. Já o feminino, sendo marcado, recebe, por oposição ao masculino, o acréscimo da desinência de gênero, no caso o “-a”. Assim, só podemos ter, na língua portuguesa, um feminino, em relação a um masculino, se houver uma oposição de gênero e uma flexão.
O gramático latino Varrão estabeleceu a diferença entre flexão e derivação, chamando esta de deriuatio uoluntaria e aquela de deriuatio naturalis. Varrão chama a flexão nominal e verbal de derivação natural porque o sistema da língua impõe que se diga “as casas são bonitas” e não “as casa é bonita” ou “as casa são bonita”. Já a derivação é chamada de voluntária, porque nada no sistema da língua obriga a concordância da derivação de uma palavra com as demais na frase. Assim, podemos dizer “o carrão é bonito”, sem que haja uma imposição que nos obrigue a dizer “o carrão é bonitão”.
No que diz respeito à palavra “poetisa”, não existe aí um feminino de “poeta”, mas uma palavra feminina que guarda uma relação semântica com uma palavra masculina, em cuja relação existe uma derivação e não uma flexão. Se atentarmos para o sistema da língua, o feminino de “poeta” deveria ser “poeta”. De que modo? Ora, a palavra “poeta”, no masculino, é constituída pelo radical “poet-” e pela vogal temática “-a”. Quando dizemos “a poeta”, poderíamos pensar que o “-a” se tornou, automática e inconscientemente, desinência de gênero. O sistema da língua portuguesa permite que se pense dessa maneira.
Vejamos que há o sistema da língua se alimenta também dos costumes sociais. Assim, poeta, tem uma única forma por ser uma atividade essencialmente masculina na sociedade latina. Mesmo que houvesse mulheres fazendo poesia e deveria haver, não se dava a devida importância ao fato, até pelo fato de que a palavra “poeta” designa, na sua origem, o que fabrica, o artesão, o que faz, profissões de homens. Por outro lado, a palavra “sacerdote”, que apresenta, no feminino, a forma “sacerdotisa”, bem que poderia ter como seu feminino “sacerdota”. Na sociedade latina, empregava-se “sacerdos sacerdotis” (radical “sacerdot-”), tanto para homem como para as mulheres, visto que ambos poderiam exercer essa atividade, mas também existia o par opositor “sacerdotia”, descartado pelo uso na nossa língua.
Na realidade, para o uso, pouco importa que se utilize a “poeta”, como flexão, ou a “poetisa”, como derivação. Cada um escolhe a forma que mais lhe convém, com a qual se sente mais à vontade. Ninguém será punido por isso, nem há erro algum em escolher uma das duas formas. O uso, no entanto, num futuro que não poderemos precisar, dirá se o que vai permanecer é a “poeta” ou a “poetisa”.
Milton Marques Júnior é doutor em letras, professor, escritor e membro da APL