Pois bem, disse ele: “Ouvi relatos, mas sempre acreditei serem fanfarronices de mentes desocupadas. E por assim pensar, não dava importância ao tema, até que os vi com esses olhos, que como se diz por aí, a terra um dia há de comer. O episódio inusitado ocorreu naquele trecho de estrada que liga Guarabira a Sapé no brejo paraibano alguns meses atrás. Há um local onde toda semana, regularmente, deixamos um prato com cubos de rapadura e uma meiota de cachaça. Eles obviamente apreciam”. Relato feito n’uma mesa reservada da Livraria do Luiz em certa manhã de sábado no Centro Histórico de João Pessoa. Adianto que bebericávamos somente um bom café expresso, está certo?
Nos acompanhava na conversa o escritor Zé Ronald que, com sua tranquilidade peculiar, acenou positivamente, confirmando a história, já que foi testemunha ocular e refletia muito sobre o assunto. Questionado por Paiva se já tinha visto algo semelhante em minhas andanças, não foi preciso escavar a memória e como um lampejo, lembrei de uma viagem que fiz ao Mundo-Sertão onde vi algo surpreendente. Sem me fazer de rogado, iniciei a descrição do ocorrido: “– Era janeiro, tinha ido com o amigo historiador Eraldo Maciel para Amparo, no Cariri (sua terra natal) afim de curtir a animada festa do padroeiro São Sebastião. Eraldo era um companheiro de “guerra”; houve uma época em que não sucedia festa de rua num raio de 200km que a gente não se assanhasse; fomos a inúmeras, muito ensinamento e boas histórias para contar. Era noite de lua cheia e, quando no caminho entre Serra Branca e São João do Cariri, vi duas luzinhas vermelhas no meio do mato como olhos a refletir o farol alto do carro. Por uns dez minutos fiquei atônito; embora o rádio ligado, parecia que estava em transe, imerso naquela espécie de epifania”.
>Com muita atenção, Paiva e Ronald acompanhavam atentamente o relato acenando positivamente. Continuei: “- Calado estava, calado fiquei até que, nas primeiras luzes de Boa Vista virei para Eraldo e disse: “Tu vi” (nem cheguei a terminar o verbo), ele despejou: Ave Maria, tô todo arrepiado ainda, o que era aquilo? Um saci ou cumade fulozinha?”. Alguns anos se passaram e essa história esteve mantida sob sigilo até que me senti à vontade (viu Eraldo?) em compartilhar. De imediato, Paiva tira de uma pasta uma ficha para filiação ao Centro de Estudo, Proteção e Preservação dos Sacis-CEPPS entidade sem fins pecuniários de valorização desse patrimônio vivo de nossa cultura, que está sendo criada por ele.
Alguns meses depois, em 31 de outubro de 2018, Paiva me convidou para participar da reunião de comemoração (com Zé Ronald) do dia do Saci lá no Café do Vento, BR 230, onde iríamos encontrar os saltitantes, me incumbindo de levar as quinquilharias: apitos, pandeiros, matracas e toda sorte de bugigangas que comprei na Feira Central e deixei no dia anterior na bodega da localidade, onde Paiva gosta de tomar um café, recomendei entregá-lo. No dia da reunião, rumei para o Cariri, sentido contrário ao encontro, buscando o elo da tradição naquele rincão interiorano, já que a aparição no Brejo estava bem documentada.
Há 17 anos se comemora o dia do saci através de leis aprovadas em São Paulo e várias cidades do interior paulista, se espalhando pelo Brasil. Por lá criaram até uma Sociedade dos Amigos do Saci-SOSACI, com mais de mil integrantes.
Essa entidade graciosa e zombeteira, como diz Câmara Cascudo, é um dos símbolos de nosso folclore e valorizá-lo é criar uma resistência ao dia das bruxas, de origem celta cultivada em países de língua inglesa e importado para nossas paragens.
Há um ano, arrisquei frequentar uma academia, iniciando logo na última semana de outubro. No dia 31 vi a maioria dos frequentadores fazendo sua física fantasiados de monstros e bruxas, uma cena dantesca que me fez acabar o exercício mais cedo. Genialmente Paiva escreveu: “eu, Zé Ronald e Thomas Bruno cremos que num futuro próximo, o 31/10, seja um dia especial para nossas crianças e que esses petizes criem apego pelas nossas tradições e não precisem imitar modelos vindos de outras latitudes”. E quem sabe ver na academia ao invés de monstros a Comadre Florzinha, M’boi Tatá, Pai do Mangue, Caipora, Curupira, Papa-Figo, Mão Cabeluda, Saci, etc.
É isso mesmo querido Paiva, vieste a Parahyba não só fazer essa constelação de amizades, a singeleza da valorização de nossa tradição me comoveu e não só a mim, o grande artista plástico Wilson Figueiredo fez para você uma estátua em ferro lembrando nosso saci. Um troféu mais que merecido. Mil vivas aos nossos sacis. Viva o Folclore brasileiro!
Thomas Bruno Oliveira é mestre em história e jornalista