O dourado majestático que ornava a madrugada prometia um chuvisco. Sacolejando no cubículo lá da rabeira, embalado pelo ronco contínuo do motor, o menino acompanhava pelo vidro traseiro as duas esteiras simétricas, entrecortadas pela fumaça do escapamento, que os pneus da velha Rural abriam na estrada. E fundia a cabeça imaginando que espantosa força motriz era capaz de impulsionar, a tamanha velocidade, aquela fubica torta sem desmontá-la, desafiando todas as leis da Física.
Vez por outra, o cachorro Tostão, um pastor belga de pelagem amarelada, robusto como um bezerro, despejava salivosa e fraterna lambida no focinho do garoto, identificando-o, obviamente, como membro da matilha. Algum cuja fragilidade demandasse sua força, sua proteção, o tino selvagem que ainda supunha ter. O animal acreditava-se o alfa daquela tropa eclética. Por entre as pernas arroxeadas de raladuras, acomodava um pomposo peru, cujo pescoço grugulejante não valia uma arruela furada. E ele se perguntava o porquê de tanta alegria, se a dita ́da ave barulhenta ao fim da jornada era, sem sombra de dúvida, a panela.
Sobre a sua cabeça, de onde pendia desalinhada cabeleira negra, farta como uma touceira de milho, equilibrava-se, miraculosamente inclinada, uma bicicleta atada por arames na haste superior da carroceria do insólito automóvel. Dividiam ainda o exíguo quadrado duas cadeiras de espaldar, emborcadas, uma tulha de redes de dormir, três maletas e uma bacia com um fardo de carne seca. Um alguidar, sambando sobre duas bacias de estanho superpostas, completava o mafuá. Outras tralhas, rangendo, iam amarradas e aprumadas em pranchas de madeira sobre a capota furta-cor.
No banco de trás, o irmão do meio, adolescente, saracoteando com o pomo-de-adão descido recentemente, puxava o cabelo da encostada, mocinha linda, enferrujada de tão loura, com uma cintura fina de abelha. A mãe, a plácida Nicácia e a nervosa Bendita, gentilíssimas acompanhantes de toda a vida familiar, debatiam-se, indecisas entre um “valha-nos São Cristóvão”, padroeiro dos motoristas, ou um “acuda-nos Santo Expedito”, o patrono das causas difíceis.
O mano mais velho, motorista jactancioso, camisa aberta, trancelim à mostra, pois para ele tudo era festa, debruçava-se desafiadoramente sobre a portinhola de lona do calhambeque, ao tempo em que brigava com o volante, cuja folga insistia em girá-lo ao contrário a cada ribombada das bocas-de-pilão da estrada de rodagem revestida com um traiçoeiro barro vermelho misturado a minúsculas pedrinhas.
No lugar do passageiro, o pai, ensimesmado, fixava o além, mão ora no queixo, ora na testa, tórax avançado em relação ao corpo, como grumete que, do cesto da gávea, perscrutasse a linha do horizonte. Imagina-se que ali aquilatava, de si para consigo, se tomara a decisão acertada: largar o conforto pouco, mas seguro, da terrinha seca, de muito afeto, contudo veias vazias, e partir em busca de novas oportunidades para a prole. Sopesava, decerto, as responsabilidades que se imporiam, manutenção, educação e tudo o mais, diante das incógnitas da metrópole, essa esfinge indecifrável. Mas o intento pedia uma ação afirmativa, embora arriscada. E ele não hesitara. Ao contrário, firmara a decisão. Decifra-me ou te devoro!
A emoção, aqui, diz “non plus ultra”, amigo leitor. Como Píndaro, o menino atingiu suas Colunas de Hércules. Afinal, este é apenas um mero fragmento, um recorte acinzentado pelo tempo, do dia em que chegaram. Supõe mesmo - o menino - ser um dia muito parecido com o que está impresso, indelével, na memória de incontáveis irmãos migrantes, incondicionalmente adotados, abraçados e maternados nos seus inexoráveis destinos.
Irenaldo Quintans é economista e escritor